Folha de S. Paulo


Centro de agronomia da UFSM relembra vítimas; 65 eram estudantes do curso

O prédio verde e branco do Centro de Ciências Rurais, a pouco mais de um quilometro do pórtico de entrada da Universidade Federal de Santa Maria, recebeu na última semana diversos pais que buscavam refazer os passos dos filhos perdidos no incêndio da boate Kiss.

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"Eles querem conhecer onde o filho circulava: a sala de aula, o laboratório, o grupo de pesquisa", diz o agrônomo Thomé Lovano, diretor do CCR e pesquisador do preparo do solo para o manejo agrícola.

Mais de um em cada quatro mortos estudava no prédio - até sexta, eram 65 alunos. A festa destinaria parte da renda à formatura da Agronomia, mais antigo curso do centro. No incêndio, a UFSM perdeu quase 4% de seus futuros agrônomos.

Localizada na zona rural gaúcha, a UFSM existe desde 1960. Tem nas ciências rurais sua área de maior desenvolvimento tecnológico, com oito programas de pós-graduação. Produtores e técnicos rurais enviam seus filhos para estudar lá.

"É uma perda incalculável dos projetos das famílias de preparar os filhos para seguir o negócio. Muitas ficaram sem herdeiros", diz Lovano.

Os murais refletem a normalidade pré-tragédia. Há notas de disciplinas e o cartaz convidando a uma cavalgada dos veterinários que ocorreria ontem. Uma greve fez o segundo semestre de 2012 ter previsão de fim apenas em março de 2013.

Rosamélia Berleze, coordenadora do curso de de Zootecnia, diz que os alunos de Ciências Rurais são muito unidos e estão abalados. "São uma turma que gosta de se reunir para tomar seu chimarrão", lembra.

O CCR perdeu 65 alunos até sexta-feira. Dez estavam no segundo semestre de Agronomia. Como ainda há 15 alunos internados, as baixas no centro correm o risco de aumentar.

Toshio Nishijima, coordenador do curso, só falou publicamente sobre a perda de 26 dos seus alunos na acolhida aos pais e à comunidade acadêmica, na quinta-feira. Seu discurso lembrou as adversidades enfrentadas pelo pai ao emigrar do Japão durante a Segunda Guerra Mundial e a impassividade dos samurais diante da dor. Ao final, retirou-se sem mais nada dizer.

Sete dos alunos perdidos tinham bolsas de iniciação científica. Nelas, eles participam da pesquisa de um orientador com título de doutor ou equivalente. As bolsas visam identificar talentos para a pesquisa acadêmica.

Marton Matana, estudante de Engenharia Florestal vindo de Ibarama (a 128 km de Santa Maria), pesquisou o efeito dos eucaliptos na hidratação do solo e como o uso de maquinário pesado em sua colheita afeta a terra, segundo Paulo Gubiani, pesquisador do laboratório de solo.

Raquel Daiane Fischer, 18, estudava Tecnologia de Alimentos. Filha do sindicalista rural Dari Conti, conhecia pecuária desde menina --seu pai criava gado de leite em Horizontina (a 234 km de Santa Maria). Ela pesquisava aspectos do processamento industrial de carnes, orientada pela professora Rosa Cristina Prestes.

Lovano avalia que para dar a volta por cima após as perdas será preciso estimular a reflexão sobre a redução dos riscos no dia-a-dia. "Faremos nosso trabalho com mais qualidade ainda, um trabalho que esses alunos que se foram não poderão fazer", afirma.

"Ainda estamos perdidos", disse Berleze, coordenadora do curso de Zootecnia. Na sexta-feira, uma turma de 14 formandos seus colou grau sem música ou toga. Precisavam dos diplomas a tempo para se inscrever em seleções de mestrado.

Nessa primeira formatura desde o incêndio, o reitor Felipe Mello Müller pediu a ajuda dos acadêmicos na volta às aulas, na segunda-feira. "A vida continua. Temos de estar muito sensíveis e fortes para retomar as atividades. No que puderem ajudar, ajudem", disse.


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