Folha de S. Paulo


Fazenda na Espanha produz foie gras de 'gansos felizes'

Made for Minds
Gansos andam livremente pela fazenda Badajoz e se alimentam de azeitonas e bolotas
Gansos andam livremente pela fazenda Badajoz e se alimentam de azeitonas e bolotas

Os espanhóis Eduardo Sousa e Diego Labourdette são uma dupla desigual: enquanto Sousa é um jovial agricultor de quinta geração, Labourdette é um acadêmico de voz suave, doutor em ecologia e especialista em aves migratórias. Juntos, eles comercializam foie gras.

Em 2013 ambos se juntaram para desenvolver uma forma mais ética e sustentável —sem a usual e controversa alimentação forçada— de produzir o fígado de ganso ou pato com alto teor de gordura cultuado como iguaria.

Para tal, eles se aproveitam dos gansos selvagens que uma vez por ano pousam na Espanha. Lá eles se alimentam de azeitonas e bolotas, o fruto do carvalho, antes de voarem em direção ao sul, onde passam o inverno.

Em pouco tempo, Sousa e Labourdette se tornaram estrelas do mundo da culinária. "O mercado de foie gras é inacreditável. A França produz milhões de quilos por ano", explica Sousa, em sua fazenda de cerca de 500 hectares, na província espanhola de Badajoz, a cerca de cinco horas de Madri. Ao fundo escuta-se o burburinho rouco de gansos. "É um mundo totalmente diverso do que fazemos aqui."

Grande parte do foie gras comercial envolve a gavage, brutal prática de alimentação em que sondas gástricas são forçadas pela goela dos animais. Através delas, seus estômagos recebem no prazo de algumas semanas o que eles comeriam em toda uma vida. Assim, os fígados adquirem dez vezes o tamanho normal, acumulando grande depósito de gordura, o que torna o foie gras tão saboroso.

A controversa prática é proibida em pelo menos 20 países.

GANSOS NATURALMENTE SELVAGENS

A dupla de empreendedores resolveu produzir seu foie gras comercialmente de forma natural, sustentável e sem crueldade com os animais. Segundo Sousa, o método não é novo, já era usado no país há mais de 500 anos, antes da Inquisição católica. "Em 1492, a Espanha expulsou a família judaica que vivia nesta terra e costumava criar gansos, e a Igreja tomou a propriedade. Trezentos anos depois, minha família a comprou da Igreja e nós revivemos essa tradição judaica."

Caminhando sobre as amplas colinas verdes pontilhadas de oliveiras e carvalhos, Sousa chama por seus quase 2.000 gansos como se fossem crianças. Eles circulam livremente, não há viveiros. Em vez de alimentação forçada, engordam de forma natural e dobram de peso em poucas semanas, preparando-se para sua migração anual.

Os gansos selvagens passam o verão no norte da Europa, antes de migrarem para a África no outono, explica Labourdette. "Eles param na Espanha no caminho, para se alimentar e ganhar energia para o longo voo. Mas muitos nunca vão embora, pois encontram um habitat tão bom por aqui."

Gansos são adaptáveis e comem o que o ambiente oferece. O foie gras da Dinamarca tem gosto de peixe porque os gansos da região comem frutos do mar. Na Espanha, eles se alimentam das altamente calóricas bolotas, azeitonas, figos e sementes.

SACRIFÍCIO DA LUA NOVA

Ao contrário das grandes fazendas comerciais de foie gras, onde os gansos são abatidos com poucas semanas para a retirada dos fígados, na fazenda espanhola isso ocorre apenas uma vez por ano, com os primeiros ventos frios do outono, normalmente em outubro, na noite de lua nova.

Sousa chama isso de "o sacrifício". "Nós paralisamos as aves com lanternas: elas ficam hipnotizadas quando são confrontadas com luz brilhante à noite. É uma prática antiga, é como se estivessem dormindo. Então nós as sacrificamos a faca. É rápido, e elas não sofrem", assegura Sousa.

As penas são arrancadas, uma parte da carne é curada para fazer presunto, e os fígados são temperados e cozidos por cerca de 20 minutos nos mesmos frascos de vidro em que serão comercializados.

SABOR DA TERRA

O caseiro da fazenda, Domingo Diaz Escudero, dedilha flamenco na guitarra enquanto visitantes se reúnem em torno de uma mesa de madeira para provar o lote de foie gras do outono passado. Seu sabor é suave e rico, evocando as ervas, azeitonas e frutos silvestres que os gansos comeram pelas colinas em geral semicobertas de neblina.

"As músicas têm o cheiro e o sabor do país de onde vêm. Tal como os nossos gansos", comenta Escudero, nascido e criado nas proximidades da fazenda da família Sousa, e que vai sempre a pé para o trabalho. "Elas são parte da natureza."

Em 2006, o foie gras da fazenda espanhola ganhou o cobiçado prêmio francês de gastronomia Coup de Coeur —o equivalente aos Jogos Olímpicos para os gourmets. O fato chamou a atenção do chef nova-iorquino Dan Barber, que, após visitar o local, citou o modelo de negócios da fazenda espanhola numa palestra na prestigiada série de conferências TED (Tecnology, Entertainment, Design).

"Eu fui à Espanha há uns poucos meses e provei o melhor foie gras da minha vida", elogiou, na ocasião. "Foi a melhor experiência culinária da minha vida. O que eu vi me deixa convencido de que esse é o futuro da culinária." Barber descreveu a extrema simplicidade da fabricação do foie gras, definindo-a como "transformadora e sustentável". Ele também escreveu a respeito em seu livro mais recente, O Terceiro Prato (publicado no Brasil pela editora Rocco). E as vendas de Sousa dispararam.

De Badajoz para o mundo Eduardo Sousa conta que para sua família a produção da especialidade nunca passou de um hobby, "mas desde a visita de Dan Barber, passei a receber encomendas do meu foie gras de todo o mundo". Ele vende cada grama que fabrica e tem uma longa lista de espera, embora um frasco pequeno custe 200 euros, devido à produção restrita aos 1.600 gansos abatidos a cada outono.

Mas Sousa só toma o que a natureza permite: o abate em pequena escala garante o repovoamento natural e comida abundante para os gansos sobreviventes. O fazendeiro espanhol assinou recentemente contrato de fornecimento de seu foie gras ético para os cruzeiros marítimos de luxo da firma Celebrity Cruises. Ele aceita pedidos pelo site sousa-labourdette.com, mas o único local onde se pode comprar pessoalmente o produto é numa minúscula loja próxima à fronteira da Espanha com Portugal.

O estabelecimento tem recebido fregueses até mesmo de San Francisco, nos Estados Unidos: "Nós vimos a palestra nos TED Talks, e aí eu fiz o meu namorado parar aqui no caminho para Madri", conta a turista americana Alegra Cabellon. "Estou super curiosa para experimentar esse produto."

Ela tira um selfie com Eduardo Sousa e compra vários frascos de seu foie gras. No entanto terá que consumi-los antes de voltar para casa, já que as regras aduaneiras não permitem que eles entrem nos EUA. Por enquanto, o produto só é vendido na Europa, mas Eduardo Sousa espera em breve poder exportá-lo para a América do Norte.


Endereço da página: