Folha de S. Paulo


Noma fechará as portas para reabrir com fazenda urbana e 'nova missão'

Laerke Posselt/The New York Times
René Redzepi at the site of the new Noma just outside the border of Copenhagen's Christiania neighborhood. Laerke Posselt for The New York Times // René Redzepi Plans to Close Noma and Reopen It as an Urban Farm /// http://www.nytimes.com/2015/09/16/dining/noma-rene-redzepi-urban-farm.html
René Redzepi no local em que funcionará o novo Noma, em Christiania

"Bem-vindo ao novo Noma", disse o chef de cozinha René Redzepi em uma manhã ensolarada de verão. "É aqui".

Redzepi, 37, o padrinho do movimento New Nordic e chef do Noma, talvez o mais influente restaurante do planeta no momento, estava do lado de fora de uma edificação que parecia um muquifo de crack em tamanho auditório. Latas vazias de tinta spray se espalhavam em pilhas entre as ervas daninhas de um terreno abandonado. Arte de rua cobria as paredes de um armazém vazio; do lado de dentro, adolescentes deslizavam ruidosamente em seus skates.

Parada obrigatória da gastronomia internacional? O local, logo além do limite impreciso do agitado bairro de Christiania, em Copenhagen, parecia mais um Four Seasons pós-apocalíptico.

Mas a visão de Redzepi era outra, enquanto ele galgava uma escadaria até o telhado revestido de papel alcatroado para contemplar um lago na divisa do terreno. Em uma aposta arriscada, ele planeja fechar o Noma depois de um último banquete na véspera do Ano Novo de 2017, e reabrir no ano seguinte com um novo cardápio e uma nova missão.

Como parte crucial disso, ele deseja transformar o terreno decrépito em que estamos em uma fazenda urbana avançada, com o Noma como peça central.

"Faz sentido colocar a ideia em prática aqui", ele disse, a despeito das provas visuais em contrário. "Faz sentido ter uma fazenda própria, para um restaurante desse calibre". Os planos dele são declaradamente ambiciosos. Redzepi construirá uma estufa no telhado. Arrancará o velho e mal cheiroso asfalto do estacionamento e o substituirá por terra fresca. E quer que uma parte da fazenda flutue.

"Construiremos uma jangada, e faremos dela uma grande plantação", ele disse. "Vamos precisar de um agricultor em período integral, com uma equipe de trabalhadores".

Se o conceito traz um ligeiro eco do sonho de construir um teatro de ópera na selva em "Fitzcarraldo", filme de Werner Herzog, Redzepi parece plenamente ciente da aposta. "Isso realmente me deixa muito, muito, muito, muito preocupado", diz. "Não tenho medo. Mas estou preocupado".
Dan Barber, um cozinheiro de Nova York que se envolveu a fundo com a agricultura, disse que um grande desafio para Redzepi seria a imprevisibilidade do trabalho agrícola. "Isso traz riscos? Com certeza", disse Barber.

Quando um restaurante opera sua própria fazenda, como acontece com o Blue Hill, de Barber, em Stone Barns, no vale do rio Hudson, isso pode ser uma declaração do desejo do chef de ter "controle total" dos ingredientes, ele afirma, "mas obviamente a melhor coisa na agricultura é a falta de controle", e os cozinheiros precisam aprender a trabalhar com seja lá o que for que a terra produza.

"Continuo impressionado com ele", diz Barber sobre Redzepi. "É preciso um líder do setor para mudar a cultura".

As mudanças no Noma não foram ditadas pela necessidade. Não houve aumento de aluguel no espaço original do restaurante; o movimento continua forte. Redzepi só chegou à conclusão de que a casa, cuja cozinha ele comanda há 12 anos, está pronta para uma dramática evolução.

Em sua cabeça, o Noma ainda está engatinhando, e vive sua infância. "Estamos começando a descobrir nosso caminho", disse. "Ainda que tenhamos obtido sucesso, ainda que tenhamos atraído atenção da mídia e tudo isso". Recentemente, ele vem se questionando existencialmente sobre o que significa ser um restaurante local em uma região nórdica. "O que somos?", ele pergunta. "E como podemos progredir?"

Para ilustrar tudo isso, enquanto exibia o imóvel, ele apanhou um pedregulho e com ele rabiscou o número 12 na terra. Depois acrescentou um zero, transmitindo a ideia de que o Noma pode durar 100 anos ou mais. "Deveríamos tomar decisões que façam com que essa evolução dure 912 anos", ele disse.

Nos próximos dois anos, ele já assumiu o compromisso de reformular radicalmente o seu cardápio. Com o tempo, ele vem se tornando menos e menos certo de que faz sentido que os clientes passem pelos estágios tradicionais de um menu-degustação, de bocadinhos de carne até os doces e café no final da refeição. "Permitimos que o formato de um menu-degustação determinasse o que cozinhamos", ele afirmou.

Sua intenção é substituir essa progressão previsível por uma aderência mais fervorosa à sazonalidade. No outono, portanto, o foco do cardápio do Noma serão as carnes de caça (de gansos selvagens a alces), e ingredientes outonais de coleta, tais como cogumelos e frutas de floresta. No inverno, "quando as águas estão gélidas e alguns peixes estão com as barrigas cheias de ovas", nas palavras dele, o Noma se tornará um restaurante de frutos do mar.

Primavera e verão? "O mundo fica verde", ele disse. "O mesmo acontecerá com o cardápio". Em uma decisão que contraria expectativas, nesses meses o Noma se tornará um restaurante 100% vegetariano, com boa parte da abundância de produtos que ele pretende oferecer vinda da fazenda que ele está determinado a conjurar.

"É uma ideia grande", ele disse. "Como é que você vai fazer com que um prato de espinafre propicie o mesmo prazer que um filé? Uma riqueza de sabor. Isso é algo que teremos de resolver". (Até mesmo a louça do restaurante mudará a cada estação.)

Redzepi, que parece ter fome de mudança da mesma forma que a maioria das pessoas sente fome por um belo filé, disse que essa transmutação é apenas uma das mudanças que planeja para os próximos meses.

Do final de dezembro até a metade de abril do ano que vem, a equipe do restaurante será transferida à Austrália, para ver o que acontece quando a abordagem do Noma é aplicada a ingredientes australianos. (Experiência semelhante foi realizada no Japão este ano, e a reverência japonesa pelas estações do ano claramente influenciou a fundo o pensamento de Redzepi. "É como se tudo que eles comessem estivesse no momento certo", ele afirmou.)

Pela primeira vez em sua carreira, Redzepi está formando uma sociedade para abrir um segundo restaurante, um projeto mais casual em Copenhague com o chef Kristian Baumann comandando a cozinha, e ele atraiu o chef irlandês Trevor Moran, que trabalhava no Catbird Seat em Nashville, de volta ao Noma (onde ele havia trabalhado por quatro anos) a fim de ajudar a liderar a próxima onda.

As indicações sugerem que os subordinados de Redzepi estão acostumados a ouvir ordens de seu capitão para que zarpem rumo ao alto mar. A cada semana no Noma, depois do jantar no final da semana, sempre um momento de alta pressão, eles se reúnem para os "projetos de sábado à noite", um duelo público, com cara de luta de gladiadores, nos quais jovens cozinheiros criam pratos que Redzepi analisa e inspeciona. Ele até mesmo transmite o processo em vídeo via Periscope.

"É como o Google dos restaurantes", disse Malcolm Livingston 2º, que se transferiu de Nova York no ano passado para se tornar o chef de sobremesas no Noma. "Isso é o que mantém as coisas empolgantes: há sempre novidades".

Ao longo dos anos, o Noma foi pioneiro quanto a abordagens de fermentação, busca de fontes de alimentos na natureza, envelhecimento de ingredientes e até de uso de insetos na culinária. "Cada avanço é um risco", disse Daniel Giusti, o chef de cozinha da casa, que cresceu em Nova Jersey. Mas o grande salto para a agricultura pode ser o avanço mais arriscado.

"Será aí que surgirão os desafios", disse Giusti. "Estamos cultivando as coisas certas? O gosto é bom? Conheço René. Será ótimo".

Tecnicamente, o novo lar do Noma fica no centro da cidade, ainda que pareça estar em alguma fronteira distante, perdido em meio à vegetação emaranhada. Redzepi pode estar buscando pastos mais selvagens na hora certa. Uma nova ponte com espaço para pedestres em breve conectará Nyhavn, uma das partes mais turísticas de Copenhagen, à zona portuária que hoje abriga o Noma e seu laboratório de fermentação. Como acontece em Nova York, bairros baratos estão se tornando bairros caros. A mudança está no ar.

"É claro que poderíamos só continuar, ficar no mesmo lugar e fazer o que já fazemos lá", disse Redzepi. "Mas acredito genuinamente que assim não progrediremos". Ele parecia entusiasmado, parado em meio às ervas daninhas e vidro quebrado como se estivesse admirando o novo Noma em sua versão já completa. "Ninguém que conheço acha que essa é uma ideia estúpida", ele disse.

Depois parou para pensar sobre a declaração por um ou dois segundos. E logo começou a se remexer, como acontece sempre com ele. "Não consigo ficar parado", ele disse.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página: