Folha de S. Paulo


Animador da Pixar recria 100 receitas de premiado chef dos EUA; veja fotos

Os livros de culinária podem ser divididos em dois tipos. Os práticos, que com o tempo ganham orelhas e marcas de gordura, e os que o mercado editorial chama de "coffee table books". Sua última função é ensinar a cozinhar: cumprem um papel-chave na carreira de chefs autorais, alçando-os ao status de artistas. Suas receitas elaboradas, de técnicas exigentes e ingredientes de difícil obtenção, costumam espantar os mais destemidos autodidatas. Não é o caso do animador digital Allen Hemberger.

Em 2006, de passagem por Chicago, Allen decidiu jantar em um restaurante "interessante" que um amigo havia indicado. Naquela altura, só o universo foodie tinha notícia do que hoje é o principal representante da gastronomia molecular no país, o Alinea, comandado pelo chef Grant Achatz. "Minha primeira experiência foi estonteante. Passei um ano ou dois pinçando informações, até que em 2008 o Alinea lançou seu livro de receitas, e minha namorada, Sarah, me deu de Natal. Nenhum de nós sabia no que eu estava me metendo".

Cinco anos mais tarde, em abril de 2014, Allen daria cabo da última das 107 receitas do livro, num projeto de proporções olímpicas que consumiu grande parte de seu tempo, dinheiro e vida social. A certa altura, criou um blog, onde passou a compartilhar o passo a passo dos preparos, mas principalmente a revelar a magnitude do universo comestível contido nas minúsculas porções de comida servidas nesse tipo de restaurante. Aprendeu a fotografar comida (mais de 12 mil cliques para o blog), passou muito tempo conversando com agricultores para conseguir cultivar em seu quintal ervas e temperos raros que o livro pedia –e até fez cursos de cerâmica para reproduzir algumas das louças sob medida que amparam as receitas do Alinea.

Não é difícil perceber que Allen enxergou no chef Achatz um igual: detalhista, perfeccionista e muito determinado. Pupilo de Thomas Keller, o maior chef e restaurateur do país, Achatz se distanciou da comida de seu mestre para desenvolver uma cozinha essencialmente sensorial e inovadora. Também ficou famoso no meio ao ignorar três indicações médicas para extirpar a língua, tomada por um câncer. No fim, curou-se por meio de um tratamento de quimioterapia experimental muito agressivo, porque enfrentar a morte lhe parecia mais uma escolha do que deixar de ser um chef, na ausência do paladar.

"Depois de muito pensar, cheguei à conclusão de que tanto Achatz quanto eu trabalhamos na criação de experiências emocionais. Para mim, são as criações visuais que faço que ajudam a contar uma história. Para ele, é a comida. Nós dois somos artesões de um certo senso de encantamento", compara Allen.

Na busca quixotesca pelos ingredientes, a internet foi sua principal aliada. Mas não raro ela o levava a missões como descobrir alguém no Tsukiji, o lendário mercado de peixes de Tóquio, que pudesse incluir em uma encomenda de um restaurante da Califórnia uma caixinha de determinado peixe que só poderia ser encontrado no Japão. Ou convencer um empresa química a vender em quantidades não-industriais o que Achatz e Allen chamam de "magical white powders", substâncias como pectina NH e alginato de propilenglicol, responsáveis por alterar as propriedades físicas de componentes e criar os géis, espumas e esferas que se tornaram símbolo da cozinha molecular.

Na reta final do blog, Allen ganhou o apoio de Achatz e seu sócio no restaurante para que divulgassem no Twitter o ato final do projeto: uma campanha no Kickstarter (site de financiamento coletivo) para arrecadar US$ 28 mil (R$ 87 mil) e transformar o blog em livro. Um coffee table book, é claro. Com a empolgação da comunidade foodie, chegou aos US$ 40 mil (R$ 125) e despachou para apoiadores do mundo todo 750 exemplares, numerados e assinados.

Não é preciso dizer que Allen encarou a missão com o mesmo afinco. Uma vez ao mês, enviava um e-mail aos apoiadores explicando em minúcia o que aprendia sobre temas do universo editorial como fonte, tratamento de cor e encadernação.

Com minha cópia em mãos, não me surpreendeu que "The Alinea Project" superasse o próprio livro do Alinea. Um fã de compilação de dados, Allen entremeia as fotos e textos das receitas com recursos visuais que cobrem uma infinidade de tópicos, desde gráficos que avaliam o comportamento dos usuários do blog até um fluxograma de três páginas com os percursos de Allen para obter ingredientes difíceis. "Categoria: frutos do mar > pode ser encontrado localmente? > Não > ligar para Bethany, na Browne Trading > Encontrou? > Não > É japonês? > Sim > A True World Foods pode fazer com que seja entregue fresco em tempo hábil? > Não > David Barzelay pode ajudar? > Sim > Ligar para David no International Marine Products.

Suas 435 páginas compreendem ainda um relato íntimo e honesto desta experiência visceral, que afetou as relações de Allen com família e amigos. Mas, depois de tanto investimento, por que não pular para o lado de lá do balcão? "Amo cozinhar, mas ainda sou um aluno. Comandar um restaurante ou cozinhar para estranhos é intimidante. Mesmo quando preparo coisas simples, só enxergo as falhas. Mas no escritório, quando divago um pouco em pensamento, me pego mais interessado no que cozinhar em seguida do que em animação. Vamos ver o que o futuro revela".

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