Folha de S. Paulo


'Garrafa vendida por R$ 23 mil estava barata', diz especialista em vinhos

No mês passado, uma garrafa de Porto Ferreira Vintage 1815 foi leiloada pela Sotheby's na Torre de Londres, parte das comemorações pelos 200 anos da batalha de Waterloo.

Atingiu o preço 6.800 euros (R$ 23.810). "Muito barato", segundo Manuel de Novaes Cabral, presidente do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto (IVDP), que esteve no Brasil para promover os vinhos da região.

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Manuel de Novaes Cabral, presidente do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto
Manuel de Novaes Cabral, presidente do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto

"Imagine uma garrafa que resistiu por 200 anos a tudo, inclusive à tentação dos homens que não beberam seu conteúdo. Quanto vale isso?"

A história e a tradição que o cercam foram e ainda são o grande trunfo do vinho do Porto. Contudo, inovação não é dispensável. E seus produtores sabem disso. Presidente do IVDP desde 2011, Cabral falou à Folha sobre tradição, inovações e educação do consumidor:

Folha - No ano passado, havia dois Portos entre os cem melhores vinhos da revista americana "Wine Spectator". O vinho do Porto está vivendo um momento de renascimento?
Manuel Cabral - O vinho do Porto sempre foi associado a grandes momentos. Tem 300 anos de evolução e tradição. Mas não podemos ficar sentados na poltrona da história. Não queremos perder a tradição, porém nas últimas duas décadas estamos buscando novas formas de consumo e novos consumidores. Foram criados, por exemplo, novos tipos de Porto, como o Porto rosé, os Portos brancos com indicação de idade e o Crusted. Mas não é só com novos tipos de vinhos que se aumenta o consumo. Estamos trabalhando bastante a questão da harmonização. As pessoas estão acostumadas a beber Porto como aperitivo ou como vinho de sobremesa. Estamos mostrando que há outras possibilidades. Na França, que é o nosso maior mercado consumidor, por exemplo, vinho do Porto é considerado "vin aperitiff", para beber antes das refeições. As empresas também passaram a incentivar que as pessoas tomem coquetéis de vinho do Porto.

A visibilidade dos vinhos tintos do Douro, feitos com as mesmas uvas, ajudou a chamar a atenção para o vinho do Porto?
Sim. Além disso, a região do Douro Vinhateiro se tornou patrimônio da humanidade em 2001. Com isso, aumentou o turismo na região. E nunca tivemos tanto turismo em Portugal como agora. Está tudo intimamente ligado.

Entre o ano 2000 e 2010, houve uma queda nas vendas de vinho do Porto. E, de lá para cá, embora o vinho do Porto ande obtendo maior reconhecimento da crítica, as vendas permaneceram estáveis. O que houve? Os antigos morreram e não surgiram novos?
Não quero acreditar nisso. O consumo não é uniforme. Os gostos e hábitos oscilam. Em um determinado momento, os consumidores decidiram que vinhos doces e de elevada graduação alcoólica não eram adequados a seu paladar. Mas o gosto já está a se alterar. Por outro lado, no mundo todo, cada vez se produz vinhos de maior qualidade. A concorrência é brutal. Não podemos nos dar ao luxo de desprezar o mercado. E, além disso, temos um vinho que não é fácil de comunicar. As pessoas têm dificuldade de entender o vinho do Porto.

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Região do Douro, em Portugal
Região do Douro, em Portugal

O que é preciso para se entender o vinho do Porto?
Primeiro, saber que existem quatro famílias de Porto. Duas grandes: os Ruby e os Tawny. E duas menores que estão aparecendo mais agora: os rosés e os brancos. Depois, que todas elas têm vários subgrupos, especialmente as duas grandes. Ensinar sobre cada um deles é um trabalho educacional, pedagógico, que tem sido feito até em Portugal, porque o português também não conhece bem o vinho do Porto, um vinho que foi sempre feito para exportação. As pessoas não sabem o que é, como beber, a que temperatura, em que copo, com o que harmonizar.

Os aficionados têm todo um ritual para beber Porto, não?
Sim, pequenas coisas. Em um jantar, um Porto nunca deve ser servido pelos empregados. Tem de circular pela mesa, sempre pela esquerda. Se alguém demora com a garrafa na mão, não se diz "Por favor, me passe a garrafa" e, sim, "Do you know the Bishop of Norwich?" (Você conhece o bispo de Norwich?). Pois, diz a tradição, que houve um bispo em Norwich, na Inglaterra, muito velho, que dormia e se esquecia de passar a garrafa. Na Inglaterra, é o único vinho com o qual se faz o brinde à rainha sem se levantar. Tudo faz parte da tradição.

Ainda há um domínio dos ingleses na produção e no comércio de vinho do Porto? Como é a relação entre as famílias inglesas e as portuguesas? Há uma separação entre elas?
O que há é uma influência inglesa. Mas não só inglesa. Há também famílias de origem escocesa, holandesa, alemã. O Reino Unido foi durante anos o principal mercado para o vinho do Porto. Hoje não é mais. Perdeu para a França. Mas os ingleses, de fato, tiveram grande influência na cidade do Porto. Ainda hoje há a Feitoria Inglesa, uma instituição que cuida dos interesses dos comerciantes ingleses residentes na região, a arquitetura da cidade é cheia de exemplos dessa influência, há os clubes ingleses, as escolas inglesas. Mas não vejo separação. Na verdade, não há nem domínio. Desde o século 19, já havia igual número de portugueses e ingleses a comercializar vinho do Porto. Hoje, cinco empresas são responsáveis pela comercialização de 83% do vinho do Porto. Duas delas pertencem a famílias de origem inglesa: a Taylor's e a Symington.

Muitos dos vinhos do Porto vendidos hoje foram produzidos por gerações passadas, vinhos que têm 20, 40 anos de idade. Para não falar das raridades, como os Portos de mais de cem anos. E a geração de hoje, trabalha para que a próxima geração tenha o que vender? Em um mundo tão imediatista, como vocês conseguem manter essa cadeia?
As pessoas que trabalham com algo ligado à terra estão acostumadas a isso. Em geral, você não planta uma árvore para si mesmo. Planta para as gerações futuras. Fazemos investimentos para o futuro. Não é por acaso que boa parte das empresas de vinho do Porto está na mão de uma mesma família a centenas de anos. Não que essas empresas não queiram ganhar dinheiro, mas elas têm uma perspectiva geracional. Além disso, temos leis que ajudam o produtor a não cair na tentação de esgotar seus estoques. A Lei do Terço, que impõe que as vendas de uma empresa se limitem a um terço do seu estoque em armazém, e outros mecanismos preveem a necessidade de envelhecimento do vinho do Porto. Toda empresa tem interesse de, vez ou outra, tirar da cartola uma surpresa para o mercado. Uma empresa de tecnologia lança um tablet com novas funções. Uma empresa de vinho do Porto surpreende o mercado com um lote de vinho antigo.

As empresas às vezes anunciam que descobriram um lote de vinho muito antigo. Como isso é possível? Ainda existem barricas antigas que não foram contabilizadas?
Sim, ainda há alguns estoques, principalmente em pequenas quintas, de barricas de vinho antigo das quais não temos registro nem conhecimento. Agora estão, por exemplo, descobrindo lotes de Porto branco muito antigos ainda em barrica. Os anos fazem com que eles escureçam. O branco, o tawny e o ruby vão se aproximando com o tempo, podendo até inverter as cores. É difícil diferenciar um tawny velho de um branco velho. E, no caso dos já engarrafados, os rótulos antigos nem sempre traziam todas as informações.

Que conselhos o senhor daria para o consumidor iniciante?
Primeiro, na hora de comprar, procure uma loja de vinhos da sua confiança e peça indicação para o vendedor. Experimente os quatro tipos de vinho do Porto. Ruby, Tawny, branco e rosé, para saber o que lhe agrada. Para tomar como aperitivo, escolha um branco ou um tawny. Para acompanhar um doce conventual português, um tawny 20 ou 30 anos. Com queijos mais densos, tipo Serra da Estrela, um Vintage ou um LBV. Para impressionar, um vintage ou um colheita do ano de nascimento (ou casamento) da pessoa.

Confira receita de drinque com vinho do Porto criado por Angel Rubianes, bartender do Ovo e Uva, em São Paulo.

O ABC do Vinho do Porto
Entenda o que vem escrito no rótulo

Ruby Vinho tinto, de tom avermelhado e aroma frutado. Há o Ruby simples, o Reserva, o Crusted, o Late Bottled Vintage (LBV) e o Vintage.
Tawny Vinho tinto, mas de tom acastanhado, com aroma de frutas secas. É produzido a partir da mistura de vinhos de grau de maturação diferente, que passaram por barris ou tonéis de carvalho. Quando são engarrafados estão prontos para serem consumidos. Pode ser simples, Reserva, Colheita ou ter Indicação de Idade (10, 20, 30 ou + 40 anos).
Branco Feito a partir de castas brancas. Pode ter vários estilos, diversos graus de envelhecimento e diferentes teores de açúcar. O branco leve seco, por exemplo, tem aroma floral e complexo e baixa graduação alcoólica (16,5%). Pode ser simples, Reserva ou ter Indicação de Idade (10, 20, 30 ou + 40 anos).
Rosé Vinho rosa, obtido por maceração pouco intensa de uvas tintas, com aromas de cereja, framboesa e morangos. Podem ser consumidos com gelo. Muito usados para coquetéis.
Reserva Pode ser um Ruby ou um Tawny. O Ruby é uma seleção dos melhores vinhos do Porto do ano. Encorpado e frutado, tem tom vermelho rubi. O Porto Tawny Reserva é envelhecido em carvalho, tem tom âmbar e tons de oxidação, mas mantém os aromas frutados.
Crusted Um Ruby, de categoria especial, que envelheceu na garrafa por três anos antes de chegar ao mercado. É encorpado e tem aroma de frutos vermelhos.
Tawny 10, 20, 30 ou +40 anos Um blend de vinhos cuja a média de idades é a indicada na garrafa. Como todo Tawny têm notas de oxidação, que se intensifica com a idade. A cor vai acastanhando cada vez mais até tornar-se ambar claro. E os aromas de frutas secas vão predominando.
Colheita De uma só colheita são envelhecidos em carvalho por um mínimo de sete anos. O tom varia do tinto aloirado ao aloirado, dependendo da idade. Igualmente os aromas e sabores evoluem ao longo do tempo originando diversos estilos de Tawnies.
Late Bottled Vintage (LBV) É um Ruby de uma só safra, escolhido por sua qualidade superior. É engarrafado depois de um período de envelhecimento de quatro a seis anos. Alguns podem continuar o seu envelhecimento em garrafa (verifique o rótulo). Tem tom vermelho rubi intenso, é bastante encorpado e rico na boca. Algumas características variam de acordo com a safra.
Vintage Considerado o melhor de todos, amadurece em garrafa. Produzido a partir de uvas de uma única safra, é engarrafado dois a três anos após a vindima. Pode ser guardado por décadas. Não deve ser consumido antes de 10 anos.


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