Folha de S. Paulo


Conheça histórias de colecionador obcecado por livros de culinária

A rotina é obsessiva: diariamente Ézio Carlos Costa, 47, gasta horas na internet à caça de bibliotecas e novos trabalhos acadêmicos sobre gastronomia, faz telefonemas a livreiros do país, alternando os contatos para não esgotar a paciência de nenhum deles. Semanalmente vai à Academia Paulista de Letras ou à Biblioteca Mario de Andrade e passeia por sebos.

Rubenira Farias de Oliveira, bibliotecária da APL, conta: "Estou estranhando, faz uns dias que ele não aparece, acho que completou a coleção". Quase: ora ele diz que faltam três livros, ora diz que faltam dois. "Mas não digo quais são, senão vou inflacionar o mercado."

Mas quem é Ézio? Atualmente, é o dono do maior acervo de livros de cozinha publicados no Brasil do século 19 até a década de 1940. Se a biblioteca da Academia Paulista de Letras possui 139 exemplares dessa área nesse período e a Mario de Andrade soma dez obras que tratam do folclore ou da história da alimentação, Ézio possui 330 volumes, 70 deles raridades, caso da primeira edição do "Manual de Confeitaria", de 1866, guia com utensílios, técnicas e receitas de pães, doces e outros quitutes.

O pesquisador autodidata compra tantos exemplares que chega a ter todas as edições de um só livro. O hobby começou em 1997, quando trabalhava na cozinha de um hotel e o chef lhe trouxe o "Cozinheiro Nacional", de 1882. Foi arrebatador.

"No máximo consigo três livros por ano, mas este ano foi maravilhoso: comprei cinco. Mas não bota isso na matéria, senão vão aumentar os preços." O máximo que Ézio pagou em um exemplar foi cerca de R$ 2.000 pelo "Doceiro Nacional ou Arte de Fazer Toda a Qualidade de Doces", uma "obra contendo 1.200 receitas conhecidas e inéditas de confeitos, empadas, pudins, tortas, biscoutos, bolos, bolachas, broas, babás, savarins, vinhos, liquores, xaropes, limonadas, sorvetes e gelados (...) ornada com numerosas estampas", como explica longamente a página de rosto.

A negociação pelo título levou mais de duas semanas e garantiu um desconto de pouco mais de 30% –o que às vezes não é suficiente para os custos com restauros.

CAIXA FECHADA

Vez por outra, surge um golpe de sorte. Há cerca de dois anos ele arrematou por R$ 100 uma caixa fechada num leilão e dentro encontrou a quinta edição do "Cozinheiro Nacional", lançada em 1906 e a única com impressões de imagens em cores. O livro vale pelo menos 15 vezes o valor da caixa.

Entre um livro e outro, Ézio arremata antiguidades para vender. E é assim que se sustenta, uma vez que deixou a cozinha profissional. No momento, ele está com a caneta utilizada pela Princesa Isabel no dia de seu casamento e com uma colcha abolicionista que a nobre usou em homenagem à morte de Zumbi dos Palmares, por exemplo.

ESTUDO INCESSANTE

Nestes mais de 15 anos de buscas, grafias como "hervas", "vacca", "prezunto" e "geléa" tornaram-se corriqueiras. As receitas não passam de objeto de estudo e jamais são testadas. "A farinha, os ovos, a manteiga. Tudo era diferente. E eles não tinham dó de usar açúcar e gorduras", justifica ele.

No entanto, sempre que surge um ingrediente desconhecido, Ézio recorre ao "Diccionario Bibliographico Portuguez: Estudos de Innocencio Francisco da Silva", uma obra publicada em 22 volumes de 1858 a 1923 e que se encontra na Academia Paulista de Letras.

Foi assim que ele chegou à primeira referência bibliográfica ao pão de ló dos dias de hoje –o bolo fofo. Ela aparece no livro "Arte de Cozinha", de Domingos Rodrigues, numa edição de 1758 publicada em Lisboa.

Entre os séculos 16 e 17, o pão de ló lembrava mais uma bala de coco, preparado no tacho com quantidades obscenas de açúcar. Essa era uma forma de a elite portuguesa exibir sua riqueza diante de outros países europeus. Afinal, o açúcar ainda era um artigo de luxo.

No acervo de Ézio ainda há espaço para curiosidades que vão além das receitas, a exemplo de uma página interna na primeira edição de "Comer Bem", de 1940, de Dona Benta, que ganhou uma propaganda inusitada dos cigarros da Souza Cruz.

SERVIÇO
Academia Paulista de Letras
Lgo. do Arouche, 324, República, região central, tel. (11) 3331-7222
Biblioteca Mario de Andrade
R. da Consolação, 94, República, região central, tel. (11) 3256-5270


Endereço da página:

Links no texto: