Folha de S. Paulo


Ainda há uma atualidade desconcertante na 'nouvelle cuisine'

Há um ano, numa performance espetacular, Alex Atala matava uma galinha no palco do MAD, em Copenhague, evento que costuma provocar frisson na gastronomia.

Desde que o Noma apareceu como o primeiro restaurante do mundo, segundo o prêmio da revista inglesa "Restaurant", em 2011, somos obrigados a olhar para a Dinamarca e para o chef René Redzepi, além de meditar sobre os ensinamentos da sua filosofia "locavorista".

Resumidamente, nada que é produzido a mais de cem quilômetros do local onde estamos deveria ser levado à boca (além de ser "natural", "orgânico", "sustentável" etc). Mas cada época tem a sua gastronomia, alinhada com outros fenômenos culturais.

A "nouvelle cuisine" francesa, dos anos 1970, tem parentesco com o movimento hippie. Graças a este, passou a considerar a relação do homem com a natureza de maneira nova. Nada ficou no lugar. E a velha França, que perdia brilho, virou mais uma vez a meca dos cozinheiros.

Mas nada é estável na cozinha. Menos de duas décadas depois, Ferran Adrià ouviu falar pela primeira vez em química e física na cozinha e isso mudou o curso da gastronomia. A técnica e suas invenções correram o mundo.

Quando Adrià fechou o El Bulli, em 2011, criou uma legião de "órfãos", sem saber para onde a gastronomia rumaria. Andou ao léu.

Um novo ciclo parece ser esperado por todos os chefs e, enquanto esse não chega, seu discurso político-ideológico se limita ao marketing pessoal de cada um.

Mas tudo se resume a saber de onde se parte para chegar a algum lugar, e já não faz sentido partir de novo da gastronomia do fim do século 19.

Como Adrià partiu da "nouvelle cuisine" para bolar a sua própria cozinha, será que não ficou lá o começo de toda modernidade culinária que é necessário revisitar?

A "nouvelle cuisine" chegou mesmo a elaborar um decálogo onde estabeleceu várias coisas: pregava-se evitar a complicação inútil e descobrir a estética da simplicidade; evitar molhos muito ricos e densos, retornar à gastronomia regional; buscar uma cozinha saudável; mesclar os novos sabores; utilizar as vantagens da ciência para melhorar a cozinha etc.

Que chef não subscreveria isso hoje? Há, aí, uma atualidade desconcertante, passados mais de 40 anos de seu aparecimento. A geração da "nouvelle cuisine" havia corrido para as bases, reinventando tias e avós, olhando em detalhe o campo, mais ou menos como hoje fazem os seguidores de René Redzepi.

Talvez os órfãos de Adrià, além de acorrerem ao MAD, tenham que refazer o percurso do mestre: voltar à "nouvelle cuisine" e ouvir o que aqueles "velhos", agora rejuvenescidos, disseram.

Não desprezar as novas técnicas, mas voltar à filosofia que colocava a natureza "forte" e o trabalho "desbastado" mirando o encantamento do paladar e a libertação do homem do peso da vida cotidiana sem magia. Se não for assim, a gastronomia corre o risco de ser nada.

CARLOS ALBERTO DÓRIA é sociólogo, autor de livros como "Formação da Culinária Brasileira"


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