Folha de S. Paulo


'Alex Atala é menos valorizado no Brasil do que no exterior', diz Ferran Adrià

Para o chef catalão Ferran Adrià, do extinto El Bulli, a próxima revolução gastronômica está na informalidade. "O que hoje é de alto nível vai mudar", diz.

Em São Paulo para uma série de palestras, Adrià fala sobre a experiência de ter fechado o estrelado El Bulli para investir em uma fundação e em uma enciclopédia gastronômica colaborativa. "Para o chef experiente, cozinhar passa a ser algo mecânico. Hoje, conversar uma hora sobre filosofia é mais importante do que fazer um 'consommé'."

Leticia Moreira/ Folhapress
O chef Ferran Adrià, que veio ao Brasil a convite da Telefonica Vivo
O chef Ferran Adrià, que veio ao Brasil a convite da Telefonica Vivo

Sobre o Brasil, o chef afirma que há um movimento gastronômico consistente no país, liderado por Alex Atala, mas que ele tem "uma sensação de que Alex não é tão valorizado aqui como é lá fora". Veja abaixo entrevista dada à Folha nesta terça-feira (5).

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Folha - Quando você saiu da cozinha, imaginava que iria fazer uma viagem tão profunda e complexa?
Ferran Adrià - Estou descobrindo algo novo e é o momento mais excitante da minha carreira. É um sonho que alguém que já fez sua carreira possa recomeçar de outra maneira. Claro, há um cordão umbilical com o El Bulli anterior, mas é uma outra história agora.

Na cozinha do El Bulli você desconstruia ingredientes. Hoje, fora dela, você imaginava continuar a descontruir tantas coisas?
Mais que isso, passamos da desconstrução para a decodificação. A cozinha é um código, tiramos cada coisa dela e pesquisamos para poder decodificar. Fazemos perguntas simples, como "o que é uma fruta?". É interessante, porque todos sabem o que é uma fruta. Buscando essas respostas, acabamos criando um diálogo fascinante com a sociedade e percebemos que a cozinha é uma linguagem universal para chegar à gente, para falar de inovação, de saúde, de muitas coisas. A decodificação da cozinha é um trabalho de anos, é um trabalho para a minha vida, seguramente.

Se voltasse à cozinha hoje, seria diferente?
Eu estou cozinhando. Quando me faço essas perguntas, teóricas, estou cozinhando; quando estou na minha casa, estou cozinhando. O que não me apetece mais é o mundo dos restaurantes. Eu fiquei 25 anos, 16 horas por dia, em um restaurante. Quero viver de outra maneira. Não tenho nenhuma sensação de que não estou na cozinha.

De fora do restaurante, como você vê o trabalho que outros chefs estão fazendo?
Fascinante. Nunca vi a alta cozinha tão diversa. No tempo da nouvelle cuisine, fazíamos tudo muito parecido. No Brasil, vejo chefs com 25, 30 anos, fazendo coisas incríveis. A minha geração vê que a próxima é melhor que a nossa.

Por quê?
Hoje, os chefs estão mais formados e cultos. Esqueça a vanguarda, ela passa. Gente como Albert [Adrià, irmão de Ferran], no Tickets, é muito mais feliz fazendo esse "prêt-à-porter" [roupa feita industrialmente, com boa qualidade e assinada por um estilista] porque não busca surpreender o mundo com a vanguarda. O projeto dele é muito interessante para os jovens, porque demonstra que você pode ser importante sem três estrelas "Michelin". Quando eu comecei na cozinha, ou se tinha estrelas, ou você não era nada. Tudo bem que as pessoas apostem nelas, mas que os jovens possam também montar seu pequeno local, informal, com boa cozinha.

Para você, a próxima "revolução" terá muito mais a ver com a informalidade?
O que está acontecendo agora é que todo o conhecimento da arte culinária é traduzido em "prêt-à-porter". Já se vê isso em bistrôs modernos na França e tem a ver também com o conceito de tapas: a ideia de comer com mais informalidade, de compartilhar. Não havia uma visão da Europa e América sobre isso, era algo mais asiático, eu acho que essa é a grande revolução.

Há influência da cultura de comida de rua nisso?
Acho que isso é uma moda, não se sustenta como negócio. Há projetos muito bonitos, mas a gente que o faz se cansa. É duro. Fazer algo de qualidade... não sei. Não sei se essa é uma tendência de anos ou algo que vai ficar.

Você reconhece o seu trabalho na cozinha de hoje?
Não de Ferran Adrià, mas sim de El Bulli. Não existiria Alex Atala, dessa forma, se não existisse o Bulli. Isso, ele disse. Eu pude fazer algo, mas os pratos não são tão importantes. Quando Alex me mostrou os produtos da Amazônia, eu vi um novo mundo, que não conhecia. O Bulli era um diálogo, em que você trazia algo e recebia muito. Essa é a força do Bulli: passaram por lá 2.000 cozinheiros, alguns são os mais influentes do mundo agora. E foi muito bom parar nesse momento, fazer um "reset".

China e países da América Latina serão os locais do futuro gastronômico?
Isso eu disse há cinco anos. É o presente. Para o futuro, digo que serão os países do sudeste asiático, Índia... Não que eu seja um visionário, é só olhar a história da humanidade e ver onde estão as culturas.

Como você avalia a gastronomia no Brasil?
O Brasil tem uma característica muito interessante. É um país muito especial, de cultura cosmopolita e jovem. O país está construindo sua cozinha contemporânea e esse processo vai ser mais lento que o do Peru ou do México, que têm a cozinha popular mais consolidada. Quando eu vim para cá em 1987, os brasileiros não sabiam dizer o que era a comida brasileira, além de quatro pratos. Hoje, a sua origem está sendo redescoberta e isso vai se converter no que os brasileiros quiserem. Como eu já disse, não há tradição. Daqui a 100 anos, o que será tudo isso? Quais eram as influências?

Temos um movimento consistente?
Há um trabalho importante de Alex e de outros cozinheiros. Mas me dá uma sensação de que aqui não se valoriza o Alex como lá fora. Ele é um dos cozinheiros mais importantes do mundo, principalmente no que diz respeito ao significado da Amazônia. O Brasil tem características diferentes, mas não deve haver um país só. Hoje em dia eu acho muito difícil que aconteça algo como o que houve na Espanha. A mim interessam mais as culturas do que os países. Por exemplo, o intercâmbio entre japoneses e brasileiros em São Paulo. Sem a união, a história não mudaria. Acho que Brasil não tem que se posicionar como único. Acredito que há um tema pendente: como seria o "prêt-à-porter" brasileiro? Um rodízio?

Cozinha é sempre algo transformador?
Sim. Não é que haja só uma cozinha, há milhões de processos culinários. Um prato depende do que você quer dizer. Não tem nada a ver um canapé com um ravióli. E é cozinha. Sabe o que é mais bonito? Que hoje é quase a primeira vez que explico as coisas assim. Vejo que a fundação vai dar uma energia ao mundo gastronômico em um momento especial. Trata-se de ordenar o conhecimento para que os novos possam fazer uma revolução. Eu organizo para ser anárquico.


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