Folha de S. Paulo


"Aliamos vanguarda e tradição", diz Josep Roca, do melhor restaurante do mundo

Três irmãos passaram a infância dentro da cozinha ou atrás do balcão de um modesto bar tocado pelos pais, em uma cidade espanhola de menos de 100 mil habitantes.

Alguns anos depois, abriram um restaurante anexo ao comércio dos pais. O talento dos três impulsionou de tal maneira o negócio que eles se mudaram para uma casa maior, mas ainda próxima ao bar que havia sido fonte de inspiração.

David Ruano/ Divulgação
Os irmãos Jordi, Joan e Josep Roca
Os irmãos Jordi, Joan e Josep Roca

Sempre em torno do fogão e da mesa, a família seguiu unida por décadas.

Seria uma história qualquer não fossem esses os irmãos Joan, Josep e Jordi, à frente do Celler de Can Roca, aberto em 1986 em Girona, na região da Catalunha.

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Sorvete de cogumelos
Sorvete de cogumelos "cêpes" com bola de caramelo recheada com vapor

Na última segunda, o Celler foi anunciado como o melhor restaurante do mundo no prestigiado ranking da revista inglesa "Restaurant".

Os irmãos Roca conseguiram a façanha de levar de volta à Espanha a coroa da gastronomia depois de três anos em que o restaurante dinamarquês Noma, de Copenhague, manteve a liderança.

Comandado por Ferran Adrià, o extinto El Bulli, também da Catalunha, havia sido o número um durante cinco anos, em 2002 e entre 2006 e 2009.

Além do Celler, a presença espanhola entre os "top dez" se completa neste ano com o Mugaritz, em quarto lugar, e o Arzak, em oitavo, ambos da região de San Sebastián.

Leia relato sobre a experiência que a colunista teve no restaurante, em 2010

LIVRO E ÓPERA

"Sermos o número um nos ajuda a evoluir ainda mais", disse Josep em entrevista à Folha, concedida pelos irmãos em duas etapas.

Talvez soe como uma frase feita de quem não tem o que dizer ao receber um prêmio. Não é o caso dos Roca, verdadeiramente obcecados por explorar novos caminhos.

Bilderberg /AFP
Compota de maçã, flor de laranjeira, menta e manjericão com sorbet de melão
Compota de maçã, flor de laranjeira, menta e manjericão com sorbet de melão

A ascensão ao pódio coincide com o lançamento de "El Celler de Can Roca, Una Sinfonía Fantástica", um livro ambicioso, com 463 páginas, em que não apenas compartilham receitas como explicam as técnicas e a filosofia de trabalho.

No dia 6 de maio, eles darão um passo ousado, com a apresentação da ópera gastronômica "El Somni" (o sonho), em Barcelona.

Nela, 12 convidados degustarão 12 pratos ao som de 12 peças musicais compostas para a ocasião. Enquanto isso, imagens serão projetadas sobre a mesa ao redor da qual estarão sentados. Pretendem repetir a performance em outras cidades.

"Bebemos de distintas fontes culinárias e agora queremos ser o manancial que flui", escrevem os irmãos Roca no prefácio do novo livro.

Em outras palavras, a hora é dos meninos de Girona.

A ENTREVISTA

A entrevista com Josep, Joan e Jordi foi realizada em dois momentos.

A maior parte dela transcorreu algumas horas antes da divulgação do resultado na última segunda, mas eles voltaram a falar com a Folha após a consagração do Celler como o melhor restaurante do mundo.

Folha - Qual a relevância de ser o primeiro colocado desse ranking?
Joan Roca - É muito importante para nós e para o restaurante. E ainda mais para o nosso entorno. Funciona como propaganda para valorizar a região. Vemos de maneira clara como essa associação da Catalunha com uma gastronomia comprometida com a excelência se irradia para o mundo e se reverte em benefícios tangíveis como restaurantes, hotéis e outros recursos turísticos.
Jordi - Nos sentimos muito contentes e queridos. É um posto que nos enche de alegria, mas também de responsabilidade. Agora, é momento de desfrutar e de cozinhar com alegria, criatividade e liberdade.

Os restaurantes que ocupam o primeiro posto da lista dos 50 melhores têm características em comum: seus chefs-proprietários lançam tendências e lideram movimentos gastronômicos. Por que vocês acham que alcançaram o topo?
Joan - Isso é algo bem difícil de explicar. Muitas coisas nos diferenciam dos outros, eu diria. Temos compromisso com uma criatividade que homenageia a tradição. Nossa busca é por um equilíbrio entre a vanguarda, a ciência, a memória e a tradição. Talvez, de alguma maneira, representemos a continuação do compromisso que a Catalunha tem com a criatividade na gastronomia.
Josep - Acho que chegamos aonde chegamos porque fazemos uma cozinha interdisciplinar, que une o doce, o salgado e o mundo líquido...
Jordi - Sim, uma cozinha que conduz a uma emoção a partir do que se come.

Com a crise financeira na Espanha, muitos restaurantes estão sofrendo com a falta de clientes. Alguns até tiveram de fechar. O Celler de Can Roca, no entanto, tem longa lista de espera e vive cheio. Isso se deve ao 50 Best e às três estrelas no "Michelin"?
Josep - Há muitos fatores que podem explicar isso. Nos últimos cinco anos, em que estivemos entre os cinco primeiros da lista, houve um aumento importante no número de clientes anglo-saxões, que foi consolidado também pelas três estrelas no "Michelin".
Além disso, ganhamos adeptos com nosso projeto, que alia hospitalidade, generosidade, vanguarda e uma cozinha fraternal do mais alto nível.

Vocês trabalham aparentemente em perfeita sintonia: Josep como sommelier, Joan nos salgados e Jordi na confeitaria. Se existisse um quarto irmão, o que ele seria?
Joan - Economista!
Josep - Contador e relações públicas (risos).

Vocês planejam expandir sua ópera gastronômica e fazê-la caminhar pelo mundo. Isso não vai tirar o foco de vocês do restaurante?
Joan - Na noite de estreia, dia 6 de maio, o restaurante estará fechado. A intenção é fazer uma ópera por mês, no máximo, sempre às segundas, para que na terça estejamos de volta ao restaurante. Pretendemos nos revezar, sempre um de nós irá cuidar da ópera, e os outros dois ficarão no Celler. O restaurante é prioritário e seguirá sendo para sempre. O dia em que não estivermos lá será o dia em que o Celler de Can Roca fechará.

A ópera gastronômica representa um passo rumo à união de cozinha e música. Qual música traduz seu estado de espírito neste momento pós-vitória?
Joan - "Born to Run", de Bruce Springsteen.

Jordi conhece bem o Brasil e até já namorou uma chef brasileira (Bel Coelho). Vocês recebem muita gente do Brasil?
Joan - Temos dois brasileiros trabalhando na cozinha e cada vez mais brasileiros vindo comer. É uma comunidade gastronômica inquieta e sensível, que viaja sempre e tem muito critério e conhecimento. Geralmente, fazem do Celler uma parada em sua rota gastronômica pela Europa.

A gastronomia da América Latina está crescendo?
Joan - Os países latinos estão crescendo social, cultural e economicamente e, portanto, estão se expandindo também na gastronomia. Esse boom é midiático, mas também real. Há pontas de lança em certos pontos, amigos nossos. A gastronomia da Europa precisa render tributo e reconhecer as matérias-primas que vêm do outro
lado do oceano.


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