Folha de S. Paulo


Restaurantes de São Paulo recuperam receitas típicas de doce de leite

Os ingredientes de base são os mesmos: leite integral e açúcar. Dependendo do tempo de panela, da intensidade do fogo e da procedência da matéria-prima, porém, obtém-se uma infinidade de cores, texturas e sabores.

Presente em praticamente toda a América do Sul e herança de um tempo em que se comia açúcar sem peso na consciência, o doce de leite está conseguindo, quem diria, acompanhar o paladar contemporâneo.

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Eduardo Knapp/Folhapress
Doce de leite cremoso do restaurante AK Vila
Doce de leite cremoso do restaurante AK Vila

É crescente o número de restaurantes investindo em produções artesanais, que garantem doçura sob controle.

Se, no passado, as cozinheiras chegavam à proporção de um quilo de açúcar para um litro de leite, hoje há quem alcance ótimos resultados com 10% dessa quantidade.

Por mais trabalhosa que seja a empreitada, os restaurantes não abandonaram a tradição. As receitas permanecem cheias de nuances, como no tempo da vovó.

No AK Vila, de cozinha variada, o doce leva em seu preparo fava de baunilha e passa até cinco horas no fogo baixo. Para que não grude no fundo da panela, a chef Andrea Kaufmann encarrega toda a equipe de ajudar. "Alguém fica pastoreando o doce, e quem passa diante do fogão dá uma mexidinha."

No contemporâneo Clos de Tapas, a rotina tecnológica dos termocirculadores (equipamentos que fazem cozimentos a vácuo a baixa temperatura) é quebrada sempre que a chef Lígia Karazawa faz doce de leite. É ele que acompanha o bolo gelado de coco e sorvete de coco queimado na sobremesa.

Formada pela escola Arnadi-Hoffman, em Barcelona, e ex-estagiária do extinto El Bulli, um dos mais premiados do mundo, a chef põe em prática um truque das antigas para evitar que o leite derrame. "Coloco um pires dentro da panela, virado pra baixo." Na fervura, o prato se movimenta e evita que o leite transborde.

Editoria de Arte/Folha

No mineiro Dona Lucinha, a tarefa de produzir o doce de leite clarinho servido no bufê de sobremesas, que não leva mais do que cem gramas de açúcar por litro de leite, exige muque de campeão.

"Tiramos do fogo após duas horas, quando ainda parece um mingau ralo, e batemos com a colher até o braço doer", diz Elza Nunes, filha da fundadora e responsável pela cozinha.

A produção de doce de leite sólido, para cortar, requer ainda mais tempo e paciência. É preciso mantê-lo no fogo, mexendo sem parar, até que desgrude do fundo da panela. Depois de aberto sobre uma superfície fria, como a bancada de mármore, o doce ainda deve descansar até enrijecer. "Minha avó só cortava os cubinhos dois dias depois. Caso contrário, grudam na faca", ensina Heloisa Bacellar, do Lá da Venda.

A espera vale a pena: os docinhos ficam quebradiços por fora e macios por dentro. Mas é possível modelá-los de outra forma. Nas casas do grupo Rubaiyat, os docinhos caipiras que acompanham o café expresso parecem bolinhos em miniatura.

Encarregadas da produção, as cozinheiras da fazenda Rubaiyat, em Dourados (MS), deixam que o doce descanse por uma noite, retiram a crosta açucarada que se forma na superfície e só então enrolam as pequenas balas.

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HERMANOS

A tonalidade bem mais escura e as notas fortes de caramelo caracterizam o "dulce de leche" argentino, já popular nos restaurantes e supermercados paulistanos.

Tais diferenças são fruto do método de preparo, bem distinto do nacional. "Visitei estâncias nas quais as cozinheiras produzem o caramelo antes e, só depois, acrescentam o leite", diz Heloisa Bacellar.

A chef argentina Paola Carosella, do Arturito, pula essa etapa, mas ainda assim obtém um doce bem similar ao de sua terra natal. "No meu país, come-se 'dulce de leche' até no desjejum, com pão e manteiga. Lembro que eu costumava usar uma boa colherada para adoçar o café."

Paola usa sua versão artesanal em uma série de sobremesas. Leite e açúcar vão juntos para a panela, com bicarbonato e sementes de fava de baunilha, e fervem por até sete horas. "Para transformá-lo em sorvete, basta adicionar uma quantidade obscena de gemas", brinca.

No extremo oposto, está o "manjar blanco", doce de leite cremoso e bem claro, típico do Peru. "Comemos às colheradas, geralmente na sobremesa, de um jeito bem guloso", recorda Kenji Yshikawa, natural de Lima e chef do restaurante Killa.

A pedido da Folha, Kenji reproduziu a receita típica em sua cozinha. Levados ao fogo por 50 minutos, leite e açúcar resultaram em um creme brilhante, tom bege claro. "Ficou bem parecido, mas nosso manjar é mais espesso, devido ao leite mais gorduroso e à granulação mais fina do açúcar."

Já no México, segundo a chef mexicana Lourdes Hernández, o doce de leite mais famoso leva o apelido de "cajeta". À base de leite de cabra, açúcar mascavo e canela, é vendido nas versões queimada, com vinho e de baunilha.

"Faz-se um bolo folhado com 'cajeta' que, só de lembrar, me dá água na boca", confessa.

TALHOU... E AGORA?

Quem tem mais de 40 anos certamente lembra que o leite de vaca, vendido em sacos plásticos, talhava com bastante frequência. O jeito era levá-lo ao fogo novamente. Com bastante açúcar, virava um doce saboroso, com grumos que bastante parecidos com a ambrosia.

A pedido da Folha, a chef Heloisa Bacellar, do restaurante Lá da Venda, tentou reproduzir a receita. Para sua surpresa, o leite de caixinha só talhou com muito esforço. "Primeiro adicionei suco de limão, mas não funcionou. Depois, deixei o leite integral fora da geladeira de um dia para o outro, em pleno calor, e nem assim estragou."

Por fim, Heloisa misturou um litro de leite com 170 gramas de iogurte natural, o equivalente a um copinho, e levou a mistura ao fogo - assim que ferveu, a parte sólida se separou do soro. "Só não contava com a falta de prática. Virei as costas por um minuto e a panela entornou. Mas foi gostoso sentir aquele cheiro de leite queimado, lembrou minha infância na fazenda."

Na quarta -e bem-sucedida tentativa-, Heloisa talhou o leite novamente, adicionou 1 ½ xícara de açúcar e mexeu em fogo brando por 1h30. "Ficou delicioso, sem gosto de azedo."

DA LATINHA

Lançado na Suíça em meado do século 19 e trazido para o Brasil pouco tempo depois, o leite condensado era usado apenas como bebida, reconstituído com água.

Quando passou a fabricar o produto no Brasil, em 1921, a Nestlé lançou uma série de campanhas publicitárias que ensinavam as donas de casa a usá-lo como matéria-prima para doces.

Mas foi só em 1962, quando a empresa passou a estampar receitas no verso dos rótulos (temos a imagem desse rótulo antigo, caso queiram), que o brasileiro aprendeu a cozinhar a latinha em banho-maria para transformá-la em doce de leite. Um hábito que a chef Andrea Kaufmann, do AK Vila, faz questão de manter. "Faço doce artesanal no restaurante, mas o da minha casa ainda é o da latinha cozida na pressão. Deixo cerca de uma hora, pra ficar bem escurinho."


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