Folha de S. Paulo


Natal na casa do Natal e a força de um homem chamado Jesus

Valentina Fraiz

O céu estava bastante encoberto, nacos de azul apareciam só quando as nuvens pesadas permitiam. Por elas passavam também aqueles raios fúlgidos, de um sol que teima em sair por frestas dramáticas, como esvoaçantes cortinas de voile que remetiam àquelas cenas de antigos filmes bíblicos, quando se ouvia a voz de Deus –um recado que o grande criador mandava diretamente do paraíso para seus fiéis. Seria este viajante que vos escreve digno de uma mensagem dessas –ou eu estaria apenas sugestionado por estar chegando para passar o Natal em Jerusalém?

Saí do Rio de Janeiro no sábado para passar a semana do nascimento de Jesus na terra onde ele nasceu. Já conhecia Israel –estive aqui em 1999, quando vim fazer uma linda reportagem com um garoto de nove anos chamado Jesus refazendo o percurso da Via Dolorosa, o caminho pelo qual o filho de Deus (para os cristãos) carregou sua cruz; e em 2014, quando fiquei mais por Tel Aviv para tratar de temas mais pagãos (leia-se "reality shows"). Este é um lugar onde sempre quero voltar, mas o convite para estar aqui numa data como essa era irresistível.

Eis que então, no último dia 24, eu aterrissava novamente na Terra Santa –e quando uso a expressão, estou ciente que não estou celebrando apenas a fé cristã. Judeus e muçulmanos também atribuem a essa região um forte caráter religioso –que é, inclusive, motivo de alguns dos conflitos mais sérios que temos nos nossos tempos (reforçados recentemente com a iniciativa controversa do atual presidente americano em reconhecer Jerusalém como capital de Israel).

Nada dessa tensão, no entanto, podia ser percebida nesta chegada, quando a maior ameaça parecia ser a chuva. Jerusalém em si parecia tranquila, senão um pouco agitada com seu comércio todo aberto na véspera de Natal. Alguns cartazes pela cidade agradeciam a iniciativa do governo americano ("God bless Trump, from Jerusalem DC", ou "Deus abençoe Trump", com o "DC" fazendo referência direta à capital americana, Washington DC). De resto, a atmosfera era de pura comunhão.

Sobretudo na cidade antiga, que tive a oportunidade de visitar ainda no final daquela tarde. Uma garoa já deixava escorregadias as pedras antigas –com marcas de bigas dos tempos romanos. A luz do dia já havia caído, tornando meu caminho ainda mais misterioso. Mas eu sabia bem aonde queria chegar...

Entro pela rua São Jorge –tudo sempre indicado em árabe e hebraico também– e sigo por vias estreias, encontrando um colégio copta, um mosteiro ortodoxo grego, uma congregação cristã (com convite para os cultos escrito em português!), a mesquita de Omar, até que um arco na rua Santa Helena me leva a um grande átrio, onde então encontro finalmente a basílica do Santo Sepulcro.

Para ser breve: é nesse lugar que, acredita-se, Jesus teria sido crucificado, sepultado e ressuscitado. "Só" isso... Inevitável então que, diante a modesta fachada, eu entrasse numa espécie de transe, seguindo quase hipnotizado o fluxo de fiéis que se debruçavam na pedra da unção –onde o corpo de Jesus teria descansado depois da cruz; que oravam na capela de Adão; que faziam fila para a capela do Anjo –por onde passavam por uma estreita entrada e inevitavelmente se ajoelhavam diante do suposto túmulo de Jesus.

Que transe era esse, eu não sabia bem explicar. Era de fé, sim –mas tinha menos a ver com a minha formação católica do que com a atmosfera geral de uma cidade que concentra tanta religiosidade. Circulando mais um pouco pela cidade antiga, senti novamente essa força maior que é a devoção –independentemente de uma doutrina específica. Todas são relevantes, sabemos, nenhuma mais do que a outra.

Mas nesta véspera de Natal, nesta terra onde surgiu a tradição desta festa, era impossível dormir sem sentir a força de um homem chamado Jesus. Força essa, renovada na manhã do dia 25, quando acordo para escrever este texto e tenho, diante de mim, a vista dessas colinas tão sagradas...


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