Folha de S. Paulo


Sem lentes, explorei a natureza de Bonito sem a precisão do que via

Um lugar deve ser realmente incrível quando você consegue apreciá-lo apesar de uma chuva intermitente, poucas horas de sono na noite anterior à visita e o fato de que suas lentes de contato ficaram esquecidas na pia do banheiro do hotel. Foi exatamente o que aconteceu comigo na semana passada, na minha primeira ida a Bonito, em Mato Grosso do Sul. Ah, mencionei que tenho oito graus de miopia?

Foi um exercício de aceitação, talvez o maior pelo qual eu já passei na minha vida de turista. Nunca havia estado em Bonito –um dos meus "pecados de viajante", numa lista da vergonha que ainda conta com Fernando de Noronha e as Cataratas do Iguaçu. Assim, quando fui convidado recentemente para um evento por lá, aceitei entusiasmado.

Acordei cedo para pegar um voo (raro, em mais uma pegadinha da nossa lamentável malha aérea brasileira) que me levaria direto ao paraíso e... cheguei com chuva, mas como esse primeiro dia era de compromissos, não desanimei. Bonito, todos me asseguravam, era ainda mais incrível com a chuva. Seria só conversa de guia turístico -um papo que, com pequenas variações, aproveitei em várias partes do mundo? Queria fazer uma "flutuação": boiar correnteza abaixo com um equipamento de snorkel. Mas o que eu conseguiria enxergar naquela água cristalina?

O dia livre amanheceu plúmbeo –e logo veio a chuva. Tomei um rápido café e entrei correndo no carro que me levaria à fazenda. Ainda meio atordoado de sono, levei uns 15 minutos para perceber que a paisagem lá fora carecia de contornos: eu havia esquecido de colocar minhas lentes de contato.

Eu mesmo não podia crer na minha estupidez. Este é um evento raro: minha miopia acentuada não permite que eu veja o mundo com nitidez, mas acostumei-me a enxergar tudo assim, especialmente nas primeiras horas do dia. Eu tinha um dilema: voltar para o hotel para colocar as lentes (e perder uma hora de passeio, se não ele inteiro) ou encarar tudo daquele jeito, meio embaçado.

Decidi mergulhar numa experiência inédita: explorar uma maravilha da natureza sem precisão do que via. Eu iria passear por um quadro impressionista, onde as formas teriam apenas volumes e cores -mas jamais contornos. Colocando o equipamento, meu guia (bem preparado, como aliás é a marca de todos os passeios em Bonito) me consolou: a máscara de mergulho melhora sua visão em 30%. Ou seja: eu veria as coisas embaixo d'água com uma miopia de "apenas" 5,6 graus!

Resolvi relaxar. E embaixo de um toró, entrei no rio Baía Bonita e encarei a natureza esfumaçada. Só enxergava mesmo algum peixe quando ele se aproximava a menos de cinco centímetros dos meus olhos -felizmente algo que, devido ao respeito que se criou ali com a natureza, acontecia com frequência. Eles vinham, me olhavam de perto e me ignoravam. O resto das imagens era um borrão, mas longe de me decepcionar, elas me encantavam.

Sem a visão perfeita, eu abria meus outros sentidos para aproveitar aquilo. O cheiro de chuva, que é quase um clichê, ali tinha uma intensidade palpável. Os sons do gotejar incessante eram minha trilha sonora, e os pingos grossos que caíam nas minhas costas, uma suave massagem complementar.

Em vários momentos, eu era apenas um corpo flutuando sem rumo, solto, independente -e assumidamente feliz de estar tão integrado com a natureza.

Fiquei pouco menos de uma hora neste estado, e quando o guia me despertou desse torpor para fazer um salto de tirolesa foi como se tal ruptura fosse a de um parto violento. Eu relutava em sair daquele estado improvável de felicidade. Mesmo enxergando mal, tudo era bonito demais (sem trocadilhos) para terminar assim tão abruptamente.

Tão encantado eu estava com meu experimento que eu tinha dúvidas se queria mesmo colocar as lentes para o passeio da tarde -uma inevitável caverna. Mas eu tinha uma certeza: se eu já havia ficado encantado com Bonito desse jeito, imagina o dia que eu voltar para lá com sol... e uma visão perfeita!


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