Folha de S. Paulo


Livro ataca com elegância o turista esnobe

Se você um dia já chamou Nova York de "a grande maçã", Paris de "a cidade luz" ou Recife de "a Veneza brasileira", eu tenho um livro para você, que acabei de encontrar na Librairie Voyagers, um destino obrigatório para mim toda vez que passo pela capital francesa: "De l'Art d'Ennuyer en Racontant ses Voyages", de Matthias Debureaux -ou, digamos, "Sobre a arte de aborrecer relatando suas viagens".

É, de fato, um volume de humor. Mas, abaixo da fina camada de ironia, o autor ataca com elegância essa categoria que, hoje -com a proliferação de blogs e twitters e snaps e youtubers de viagem-, está cada vez mais bem (ou seria mal?) representada: o turista esnobe.

Como ilustra bem Debureaux logo nas suas primeiras páginas, tal viajante não se impõe descaradamente, mas pretende se apresentar como um "modesto peregrino" em busca de sua atenção -como se o mundo estivesse salivando para ouvir suas peripécias.

Que não são, claro, a de um amador: "Menospreze os turistas", instrui ele. "Martele que você prefere uma viagem 'inteligente' e marque bem sua distância do viajante médio que navega com suas certezas e seu pânico de sair da rota". Esse parágrafo provocou minha primeira gargalhada (ri alto no avião que me trazia de volta das férias!) ao descrever tão perfeitamente tantos "exploradores". "Faça tudo como os nativos" -e isso é só o começo.

"Declare sua paixão pela fascinante mistura de tradição e modernidade (...) e ilustre com uma foto de um burrico ao lado de uma moto japonesa". "Exiba que não encontrou ninguém nos corredores turísticos (...), que sua visita terminou bem quando os ônibus de turistas chegaram -arrisque a mesma versão para as pirâmides do Egito, o Grand Canyon e o templo de Angkor". "Escolha um momento de graça por país: um pastor cego nas montanhas Atlas, o 'yogi' que te ofereceu chá das água do Ganges ao cair da tarde, uma velha mexicana que passou a noite falando das estrelas (...) e reforce que vocês dispensavam as palavras: a comunicação era entre olhares e sorrisos".

Com conselhos assim, Debureaux vai massacrando um por um os clichês que tanto ouvimos em relatos de viagem -e nos divertindo ao longo dessa jornada. Mas a certa altura me perguntei se as pessoas se aborreciam mesmo com relatos tão próximos do lugar-comum... A infinidade de textos (impressos e virtuais) e programas de viagens -e suas variações- que regurgitam as mesmas exaltações que o livro satiriza me faz crer que deve existir um nicho de pessoas que sonham em viver exatamente isso.

Para mim existem dois tipos de reportagem de turismo. A que diz: "eu estou aqui e você não". E a que convida "vem comigo". E fico perplexo de perceber que muitas dos colegas que escolhem o primeiro gênero, batendo na mesma tecla, fazem um enorme sucesso.

Risadas à parte, ler "Sobre a arte de aborrecer" me fez refletir sobre meu próprio papel aqui -especialmente quando encontrei, nas cutucadas de seu autor, uma armadilha na qual eu mesmo já caí: a de dizer "eu não viajo para ver monumentos, mas para ver gente!".

Num posfácio (o livro original é de 2015), Debureaux lamenta que a internet tenha acelerado essa massificação da experiência de viajar. Nos grafites dos antigos exploradores a ideia era marcar: "Eu estive aqui". Hoje, diz o autor, o Instagram reforça o grito de "aqui estou". Muito justo.

Mas existem ainda maneiras originais de registrar essa passagem/presença? Tenho que acreditar que sim para poder ir em frente. Afinal, como diz o livro ao sugerir que inventemos definições da experiência turística (ainda de falsos provérbios tibetanos), "viajar é reaprender a ser humano"...


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