Folha de S. Paulo


Não há adjetivo fácil para descrever qualquer viagem pela África

Divulgação/Ethiopia Travel
Parque nacional das Montanhas Simien, no norte da Etiópia
Parque nacional das Montanhas Simien, no norte da Etiópia

Eu mal conseguia disfarçar o meu incômodo ao ver aquele homem entrar na nossa van carregando um rifle que, apesar de bastante surrado, parecia pronto para atirar a qualquer momento.

Faltava pouco para chegar ao parque nacional das Montanhas Simien, no norte da Etiópia –um Patrimônio da Humanidade reconhecido pela Unesco, entre vários que esse país abriga. Mas, antes que aquela arma disparasse sem querer no sacolejar que a estrada imperfeita impunha, resolvi interromper a intermitente conversa do meu guia com o motorista para perguntar: "Precisamos mesmo de um homem armado para nossa visita?".

Ele será nosso guardião, explicou Thomas, o guia. Do que eu precisava ser protegido num parque famoso sobretudo pelos dóceis macacos que vagam por seus penhascos? "Leopardos e lobos selvagens", retrucou Thomas sem hesitar. "Nunca houve um acidente", completou ele, "mas o parque exige que todo visitante seja acompanhado por um desses homens. Nunca se sabe."

De fato, "nunca se sabe" talvez seja uma das expressões mais adequadas quando a gente viaja pela África. Sou contra generalizações, principalmente em comentários que se referem a um continente tão diversificado como esse (como todos!). Mas cruzar terras africanas traz à tona ideias pré-concebidas que a realidade da experiência local insiste em derrubar.

"Como você vai fazer com a comida lá?" era o que eu mais ouvia quando contava que ia passar parte das minhas férias na Etiópia. A noção de que esse é um país devastado pela fome e pela seca supera qualquer nuance de beleza que a paisagem e a cultura etíope possam oferecer –justamente o que eu estava buscando nessa jornada. Uma distorção que eu sempre procuro corrigir, tendência que foi curiosamente ampliada pelo livro que me trouxe para essa aventura.

"Swing Time", o último trabalho da inglesa Zadie Smith e ainda sem edição no Brasil, foi uma escolha intuitiva. Sou fã da escritora e há meses aguardava uma oportunidade de lê-lo. Zadie sempre provoca com inteligência e beleza questões de identidade cultural, especialmente a herança negra no mundo ocidental. O que eu não imaginava era que essa leitura seria ideal para aprofundar meu passeio pela Etiópia.

Seria um crime resenhar um livro tão complexo como "Swing time" em poucas linhas. Mas para fazer um paralelo com o que escrevo aqui hoje destaco uma parte da história de Aimee -uma cantora pop fortemente inspirada em Madonna–, para quem a personagem principal trabalha. A certa altura de sua carreira de sucesso, Aimee decide abrir uma escola para garotas numa cidade pequena num país não identificado na África.

"Vamos dar para cada uma dessas meninas um laptop: vai ser o caderno de exercício delas, a biblioteca delas, o professor delas, tudo delas!", declara a cantora com o entusiasmo inocente de quem acha, do conforto de sua casa num bairro nobre de Londres, que todos os problemas complexos da África podem ser resolvidos com a varinha mágica das boas intenções (somadas a doações polpudas).

Não há soluções fáceis para esse continente –assim como não há um adjetivo fácil para descrever qualquer viagem pela África. Sacudindo naquela van, sem perder de vista o rifle do meu guardião, eu tentava assimilar aquilo tudo que estava vivendo na Etiópia.

Não era tarefa fácil. E eu sequer havia chegado em Lalibela, onde vivi uma das emoções mais fortes da minha vida de viajante. Mas acho que finalmente consegui entender o significado dessa experiência. Que é exatamente o que vou descrever na próxima coluna.


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