Folha de S. Paulo


Estradas da Índia sempre trazem surpresas

Estávamos a uns 200 metros deles quando os avistei pela primeira vez. Aquelas figuras eram tão "lendárias", parte de um imaginário de quem tem a Índia como referência forte de viagens, que eu podia facilmente descartar aquela visão como uma branda alucinação.

Mas lá caminhavam eles, mestre e discípulo, nus, corpos cobertos apenas por um camada de cinzas –a mesma que tingia os cabelos longos e sujos. Correntes marcavam a cintura do mais velho, sem esconder sua genitália, exposta como a do seu companheiro mais jovem, que portava uma manta no ombro.

Meu amigo indiano, que dirigia, não resistiu: eu era a desculpa para que ele interpelasse os peregrinos, mas desconfio que ele mesmo estava ligeiramente curioso.

Falaram em hindi, mas não contaram muito. Estavam a caminho de Haridwar, um dos lugares mais sagrados por onde passa o Ganges, que ainda é cristalino por aquelas regiões da Índia.

Viajavam há uns quatro dias e ainda levariam mais dois ou três até chegarem ao seu destino. Logo pensei na minha sorte de estar fazendo o mesmo trajeto que o deles, de pouco mais de 200 quilômetros pelo estado indiano de Uttar Pradesh, em "apenas" cinco horas de carro.

zeca camargo

Não é coincidência que a última vez que escrevi sobre a Índia neste espaço era também sobre uma aventura na estrada. Viajar por esse país de carro é uma experiência à parte, com sensações que jamais apareceriam no conforto de um avião.

O ponto alto da rota entre Nova Déli e Haridwar, por exemplo, nem foi esse encontro que acabei de relatar. Enquanto comíamos algo em Rampur, fomos surpreendidos por uma parada: princesas (divindades?) hindus em charretes acompanhadas por bandas de trombones, pintados com letras coloridas –Janta Band, anunciavam alguns deles– atravessavam o nosso caminho.

O povo nas ruas as acompanhavam como numa procissão, enquanto cavalos puxavam as meninas impassíveis. Indiferentes até aos enormes carros com alto-falantes que se intercalavam a elas. A cena tinha um pouco de Fellini, de Almodóvar, de "Bye Bye Brazil" –e um forte colorido de Bollywood, claro.

Mas esse também não foi o tal ponto alto da viagem.

Depois de duas samosas (aquele delicioso pastel frito que é a melhor comida de boteco que a gente pode encontrar na Índia), retomamos o trajeto pela estrada e logo encontramos um noivo a caminho do altar e de seu casamento. Esta imagem, sim, superou tudo que tínhamos visto até então.

Bem acomodado numa carruagem, o homem podia ser confundido de longe com uma noiva, na verdade –tamanha a quantidade de adornos que ele usava.

Mas o que mais chamava atenção era o seu manto feito com notas de dinheiro (todas verdadeiras, depois pudemos notar) que cobria completamente o seu corpo, com uma ou outra flor de tecido aqui e ali para dar uma cor à cena.

Rodeado de crianças e cinegrafistas amadores, com equipamentos que seriam anacrônicos ainda nos anos 1990, ele ia soberano até o Garden View Café –uma imensa estrutura improvisada erguida à beira do acostamento (uma visão comum nas periferias indianas, montadas geralmente para grandes eventos, como casamentos).

Por pouco não parei para olhar como estava a festa. Com minha cara de indiano, poucas seriam as chances de eu ser desmascarado como um penetra. E, se fosse o caso, eu só precisaria mostrar algumas rupias e dizer que estava lá para enfeitar ainda mais o noivo.

Mas resolvi seguir em frente. Quem sabe aquela estrada não me traria surpresas ainda maiores...


Endereço da página: