Folha de S. Paulo


Em qualquer lugar do mundo, quando há luz tudo fica mais alegre

Pense numa cidade cinza. Aplique mais uma demão da mesma cor. Acrescente um céu plúmbeo. Um pouco de chuva. E blocos e mais blocos concreto. Bem-vindo a Riga.

Tenho certeza de que um dia de sol na capital de Letônia tem uma atmosfera diferente da que eu vivi neste Carnaval. Como qualquer lugar do mundo, quando há luz tudo fica mais alegre. Mesmo assim, num esforço de imaginação, a lembrança de Riga é sempre o cinza.

Talvez seja a forte memória do monólito da "Latvijas Radio" –uma sólida construção de linhas retas, na frente da Catedral Doma, que é um registro impossível de ser apagado do passado soviético deste lugar. Já tinha chamado minha atenção quando passei por ele ao visitar a catedral, que é simples e imponente. Mas dando voltas pela parte antiga da capital logo que a noite chegou voltei a olhá-lo de perto por conta de um violoncelo.

Estava exausto de tanto circular o dia todo pelas suas ruas –sim, cinzas. E até um pouco perdido: como um efeito colateral de tanta austeridade arquitetônica, seu senso de orientação entra em parafuso depois de um dia dobrando esquinas quase idênticas. Eu tentava achar um caminho rápido para me levar ao hotel, quando ouvi aquele som: na porta da "Rádio Letônia" um músico tocava o seu instrumento.

Queria dinheiro, claro. E levou três generosos euros do meu bolso. Mas, para além disso, senti que havia uma missão naquele seu tocar. Emocionado com a ponte que aquele som fez com a história da própria Riga, senti que estava ali não dando uma esmola, mas pagando o preço justo pela entrada de um museu sobre a vida da cidade.

Era o fechamento de um dia que me encheu de melancolia. E digo isso sem medo de assumir essa tristeza: mente sempre o turista que só narra passagens felizes, como se apenas essas experiências pudessem justificar uma viagem. O Carnaval em Riga foi uma sucessão de sensações sombrias que, ao contrário do que pode sugerir um "visitante ensolarado", tornaram a minha jornada ainda mais interessante.

Nos primeiros momentos no país que eu ainda não conhecia, senti-me miserável. Será que tinha acertado o destino? Ao pé da torre de Pólvora, um dos monumentos mais antigos da cidade, hesitei: não quis nem entrar para ver o Museu da Guerra, tamanho era o desânimo que se abateu sobre mim.

Decidi passear pelo parque Vermanes, mas a chuva conspirava contra meu otimismo. Num restaurante com vista para a Ópera, achei que fosse me recuperar, mas a comida só trouxe mais lembranças dos tempos da ocupação soviética.

Sem itinerário certo, saí a procura de algo que não fosse cinza –e encontrei raros verdes, brancos e vermelhos em fachadas art nouveau. Na exuberante praça da prefeitura, descobri até dourados. Ali ao lado, a igreja de São Pedro emprestava um pouco de beleza e fé à paisagem urbana. E com a noite caindo, um leve azul parecia querer clarear tudo antes de a noite chegar e entristecer tudo de vez.

Foi quando ouvi o violoncelo. O átrio na frente da "Rádio Letônia" estava vazio e eu era quase que a totalidade da plateia (seguramente o único passante que parou para ouvi-lo). Não reconheci o que estava sendo tocado, mas também não sou um grande conhecedor de peças clássicas. Mas fiquei hipnotizado.

E, num inesperado momento de sinestesia, aquela música me fez enxergar outras cores em Riga...


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