Folha de S. Paulo


Um relato de viagem inventado tem menos validade do que um real?

Ah, percorrer a Rússia pela Transiberiana! Uma viagem inesquecível... Não é uma jornada fácil: dias e dias no trem. Tampouco é um trajeto confortável –"modestas" sendo um adjetivo generoso para as acomodações.

Mas, quando seus olhos são testemunhas de tamanha beleza, quando você olha pela janela e vê os lagos prístinos, o céu de matizes inimagináveis, o fino gelo que recobre os galhos que resistem ao vento frio e o vilarejo no horizonte, quase pequeno demais para acreditar que é de verdade, é impossível não resistir: eu tenho que abrir meu notebook e escrever sobre isso para quem sonha um dia visitar esse lugar tão extraordinário.

Não fosse um pequeno detalhe: eu não estou no vagão de trem algum, olhando paisagem nenhuma, transportado para uma cultura distante e sedutora. Estou sentado no meu escritório, onde acabei de ler um livro divertidíssimo para qualquer viajante: "How to Talk About Places You've Never Been", de Pierre Bayard –em português, algo como "Como Falar de Lugares a que Você Nunca Foi".

Ainda sem tradução no Brasil, eu suplico que você que tem um mínimo interesse em sair pelo mundo arrisque mesmo um inglês enferrujado nesta leitura. Com exemplos que vão de Marco Polo –o "monstro sagrado" dos relatos de viagem– ao infame Jayson Blair –o "jornalista do 'New York Times' que, no começo do século 21, abalou a credibilidade do jornal com suas reportagens pelos EUA escritas sem ele sair de casa"–, Bayard nos leva por um passeio hilário (mas com profundas reflexões) por autores que provavelmente inventaram relatos de viagens pelo mundo.

Seriam esses registros menos válidos do que o do atento repórter de turismo que anota tudo para construir um retrato fidedigno de um destino insólito? Pierre Bayard defende que não: essas são narrativas que valem serem escritas, mesmo que absolutamente imaginadas.

Com seu tom irônico (e brilhante), não tenhamos a certeza de que ele defende seriamente essa ideia, mas o exercício de pensar em passeios fictícios é delicioso: para quem lê e também para quem escreve.

Ao compor as primeiras linhas desta coluna, não precisei que mais de dois minutos da internet olhando imagens "verdadeiras" (suponho!) da Transiberiana. Mas pode conferir cada um dos meus 13 passaportes: em nenhum deles você vai encontrar sequer um carimbo da Rússia, que até hoje não visitei.

E foi divertido!

Talvez tão divertido quanto foi para Marco Polo, que, apesar de ter "desbravado" a China em seus relatos, parece nunca ter ido além de Constantinopla.

Má fé de um tempo (quando falamos de Marco Polo, nos referimos ao início do século 14) em que as informações não podiam ser checadas? Mas o "caso Blair", do "New York Times" é deste século. E o enorme acesso a imagens e vídeos virtuais só facilita o trabalho de quem quer blefar nas suas escalas.

Bayard, na sua defesa, não exclui a beleza da prosa –minha inspiração para "escrever" sobre a Transiberiana vem do seu capítulo onde analisa a mesma viagem num poema do sensacional suíço (naturalizado francês) Blaise Cendrars. Teria ele mesmo partido daquela estação de Moscou ou apenas viajado na sua imaginação? Será que isso importa mesmo se as palavras nos transportam?

Não obstante, sem ainda nenhum talento óbvio para uma ficção original, renovo com você o pacto de seguir escrevendo neste espaço apenas sobre povos e países que de fato visitei. Dito isto, sigo agora para Atlântida: um lugar que sempre sonhei em conhecer.

Aguarde relatos de lá...


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