Folha de S. Paulo


Os rios estão sempre lá, contando a mesma história

Valentina Fraiz

A gente nunca conhece propriamente um rio, mas as histórias que ele conta. Ou, ainda, as histórias que a gente conta do rio, pois somos nós que viajamos nele.

Há milênios aprendemos a nos agrupar em comunidades construídas em torno de áreas férteis, abundantes. A beleza das cidades que construímos não é mais que um pálido substituto à exuberância que já existia neste mundo.

O rio está sempre lá –de uma certa maneira, contando a mesma história. Somos nós que acrescentamos nossas narrativas quando os visitamos. Olhamos, por exemplo, para o ponto onde o Khan encontra o Mekong, em Luang Prabang, no Laos, e nos perguntamos: quem foi o primeiro a sair daqui para colocar a primeira estátua na caverna dos Mil Budas?

Os noivos japoneses, devidamente paramentados para um casamento tradicional, posam para um fotógrafo às margens do Sena, com a Notre Dame ao fundo, certamente escrevendo ali sua história de felicidade. Bem como cada família relaxada num domingo de sol em Fortaleza, ali naquele cantinho onde o rio Cocó deságua no mar.

Vi a alegria das regatas douradas nos festivais de Phnom Penh. No Chao Phraya, em Bancoc, a caminho do palácio real, conferi o troco que a cobradora do barco tirava da sua latinha, fazendo com ela um barulho, como se fosse uma castanhola metálica. E por falar em castanhola, lembrei-me agora das horas que passei na ponte de Ronda, na Andaluzia espanhola, olhando o Guadalevín passar lá embaixo.

Perdi a conta de quantas vezes subi na London Eye, a enorme roda-gigante de Londres, para admirar o contorno que o Tâmisa risca na cidade –e nesse mesmo rio peguei um dia o barco que leva de uma Tate a outra, procurando na arte um consolo para o coração.

Passei por águas que nem sei se foram batizadas, como as vias fluviais que saem do lago Inle, em Mianmar, ou os incontáveis igarapés que riscam a ilha de Marajó, no Pará. E os canais de Amsterdã –será que contam como rios?

Coleciono histórias também naqueles que têm um nome tão forte que soam como um território independente. Pelo Nilo, naveguei não na nobreza do vale dos Faraós, mas na confusão suja da capital egípcia, o Cairo. Com o Amazonas –que só namorei do porto seguro de Manaus– ainda estou para ter mais intimidade.

Em abril passado fui ter com o sagrado numa parte do Ganges que eu ainda não conhecia: em Rishikesh, na porta do Himalaia, na Índia –e saí de lá bento não apenas por suas águas, mas também pelo fogo das cerimônias às suas margens, numa experiência que só não foi mais forte do que aquela que vivi, algumas semanas antes dessa viagem, naquele rio que se chama Velho Chico.

Se há águas com realmente muita história para contar nesse Brasil, elas são as do São Francisco. Mesmo antes de embarcar nelas, só de olhar os desenhos que aquele volume todo faz entre uma margem e outra, seus ouvidos parecem captar sussurros dos "causos" de quem passou por lá.

Soane, uma mulher forte que conheci em Curralinho, do lado de Sergipe, me contava que criou seus cinco filhos fritando peixe para os viajantes. Rejania, no lado alagoano, na Ilha do Ferro, faz seus bordados "boa-noite" buscando inspiração nessas mesmas águas.

E foi no próprio Chico que nos despedimos, na semana passada, de um grande ator –e, para mim, um nobre colega de trabalho. Como disseram os índios depois da sua morte, Domingos Montagner ali mesmo se tornou o protetor daquelas águas.

Não apenas "mais uma história do São Francisco", mas aquela que o Brasil todo vai contar com tristeza e respeito por muitos e muitos anos.


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