Folha de S. Paulo


Anos se passaram até eu reconhecer a Tonga da música no mapa-múndi

Solly Boussidan/Folhapress
Garotos em rua de Tonga
Garotos em rua de Tonga

Como para boa parte dos brasileiros que cresceu ouvindo boa música nos anos 1960 e 70, para mim Tonga foi, por um bom tempo, apenas um codinome para um lugar que não existe no mapa –e em nenhum dicionário que não inclua expressões chulas. Todo mundo sabia de cor o refrão de Toquinho e Vinicius de Moraes: "Eu vou é mandar você/Pra tonga da mironga do kabuletê".

Ainda criança, eu me divertia com meninos e meninas da minha idade que, fruto da educação de uma outra era, corriam o risco de levar um tapão na boca se soltassem uma palavra "suja". Mas mandar o outro para a "tonga da mironga", tudo bem!

Alguns anos se passariam até eu entender que a expressão foi, na verdade, uma maneira de xingar os militares da ditadura então no poder, numa época em que a censura era absoluta no Brasil. "Tonga..." era, quem diria, uma "canção de protesto". E mais de uma década se passaria até eu reconhecer a primeira palavra dessa expressão num mapa-múndi.

Não que ela seja muito fácil de ser encontrada por lá. Num mapa-múndi convencional, Tonga é menos que um ponto. A melhor referência é partir da capital neozelandesa: vá subindo (ao norte) com seu indicador na direção de Fiji –uma ilha de tamanho razoável–, mas, antes de chegar lá, faça um pequeno desvio para a direita (ao leste). Mas vá com cautela, porque seu dedo pode passar por cima desse país sem percebê-lo.

Quando "descobri" Tonga, o país entrou imediatamente na lista dos lugares que eu sabia que iria visitar um dia –só não tinha certeza de como chegaria até lá. Certamente não é um destino de fácil acesso. Mas foi uma viagem a Los Angeles, na Califórnia, que facilitou minha ida até lá. Isso e o timing.

Valentina Fraiz

Era o ano de 1999; o mundo inteiro se preparava para celebrar a chegada do ano 2000. E em que lugar do nosso planeta o calendário muda antes de todos os outros países? Tonga, claro! Vale esclarecer que, em 2011, Samoa "realinhou-se" com Austrália e Nova Zelândia e passou então a ser o país com "a primeira zero hora" da Terra. Mas, 12 anos antes, essa glória era de Tonga. E como eu estava fazendo uma série de reportagens sobre o ano 2000 e tinha gravações na Califórnia... Já era meio caminho andado!

E foi assim que eu cheguei a um dos lugares mais estranhos do mundo –não só por causa dessa curiosidade temporal. Tonga também tem uma das maiores taxas do mundo de sobrepeso (90%) e de obesidade (60%). E, para um lugar que é cercado por um oceano ainda abundante, a coisa mais difícil de comer por lá era um belo peixe. Era porco à milanesa no almoço e no jantar...

A paisagem era quase paradisíaca. Nukualofa, a capital, ostentava aquela indolência de lugares onde a natureza é tão presente (e exuberante) que as pessoas nem se preocupam em preservá-la. (O Brasil infelizmente tem cantos assim também.) Mas a gentileza de seus habitantes, que estavam, sim, animados com a chegada do ano 2000, acabou me ganhando.

Tudo ali era "kava", um pó que vem de uma raiz e é a base da cultura daquele local. Ligeiramente atordoante, vagamente ilícito, extremamente popular –e eu mesmo acabei entrando no universo da "kava". E tudo se transformou!

Mesmo a estranheza daqueles corpos avantajados não demorou a se transformar num confortável platô estético aos olhos deste visitante. Uma semana depois eu já estava achando uma injustiça Tonga ter um dia sido usado como substituto de um palavrão.

Nunca achei que fosse sentir tanta falta do poetinha –não por sua poesia maior, mas por sua capacidade (não menos lírica) de inventar um lugar para onde a gente queira mandar quem quer que esteja no poder...


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