Folha de S. Paulo


Dos prazeres de se perder

Istiklal Caddesi. Astor Place. Gorriti y Gurruchaga. Impasse Saint-Sébastien. Soi Silom. Alexanderplatz. Travessa dos Inglesinhos. Passeig de Gràcia. Souk el Kebir. Keizersgracht. St Martin's Lane. Laugarásvegur. Via del Corso. Já andei por tudo isso. E não uso o verbo andar apenas como figura de linguagem –andei mesmo, bati perna, gastei a sola. Ou, ainda, fiz aquilo que é fundamental em qualquer viagem: deixei as ruas das cidades me levarem (respectivamente, Istambul, Nova York, Buenos Aires, Paris, Bancoc, Berlim, Lisboa, Barcelona, Marrakech, Amsterdã, Londres, Reykjavík, Roma).

É um hábito quase automático: chego a um hotel, não importa onde, deixo as malas no quarto e saio para passear pelas redondezas. Sem mapa. No máximo levo um cartão com o endereço de onde estou hospedado, caso meu passeio me leve longe demais –como uma vez, nos canais da capital holandesa, quando peguei uma daquelas radiais que saem dos canais e fui parar sei lá onde, já quase em Roterdã...

Cheguei a me perder mais de uma vez com esse meu passatempo. Mas nunca me arrependi: as surpresas que encontramos em caminhos inesperados superam de longe os apuros de uma rara rota que não deu certo.

Por exemplo, se eu não tivesse "me perdido" certa tarde de chuva em Istambul, jamais teria achado uma loja de CDs de rock alternativo turco em Taksim, Istambul. Ou uma pequena portinha com os tapetes mais incríveis na medina de Marrakech –cujo dono, para este turista que já não aguentava mais barganhar, tinha um preço fixo e justo para suas mercadorias.

Foi quase sem querer que achei um "jardim escondido" passando por uma entrada discreta num dos cantos da place des Vosges, em Paris: os "fundos" do Hôtel de Sully, hoje meu lugar favorito para sentar e ler um livro numa tarde preguiçosa na cidade. E foi também procurando um lugar para ler que fui parar no jardim do Torel, em Lisboa, onde encontrei não apenas a melhor vista alternativa para o Tejo, mas também adoráveis banquinhos com apoios para os pés cansados de quem adora explorar uma cidade.

Um dos momentos mais felizes que tive em Bancoc foi na segunda vez que a visitei. Cansado como estava da longa viagem, me permiti apenas uma ducha rápida antes de me lançar ao labirinto das ruas de Silom, onde gosto de me hospedar. No meu iPod, "King Street", The Soulettes –curiosamente, um som sul-africano, uma "desconexão" que adoro provocar. O cheiro das frigideiras preparando a melhor comida de rua do mundo, os rostos lindos de traços delicados e até o próprio caos urbano ajudaram na minha celebração secreta de poder andar por ali novamente.

E tudo, reforçando, sem mapa na mão. Sim, eles são importantes –e hoje, com uma infinidade de aplicativos, são facílimos de consultar. Mas recomendo deixá-los para emergências. A experiência das descobertas aleatórias de uma caminhada (um pequeno museu, uma lojinha discreta, um café minúsculo, um viajante "perdido" como você), esse ato tão simples de sair andando sem planejar nada é o segredo de uma viagem.

E é exatamente isso que tento passar agora numa série de "guias" que estou escrevendo sobre as cidades que aprendi a amar com meus pés. Explico as aspas: não sigo roteiros por bairros, lojas, locais históricos ou itinerários manjados. Na minha narrativa, sou guiado apenas pela memória e pelo acaso –ao sabor de associações que eu mesmo nem sei como fiz. E provocar em quem me lê um prazer de diferente de viajar.

Fui convidado a falar neste domingo (3) na Casa Folha, durante a programação da Flip. Faremos nesse encontro um passeio por Paris. Este será o primeiro da série de pequenos livros virtuais (lançados pela e-galáxia) que vai se chamar, justamente, "Eu Ando pelo Mundo". Quero passar um pouco desse espírito do que, não por coincidência, os próprios parisienses batizaram de "flâneur" –um "passeador" em sua essência. Isso, claro, se eu não me perder nas ruas de Paraty...


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