Folha de S. Paulo


Bom Jesus Shopping Complex

Conforme o canto onde você olha, a sensação é a de estar em Ouro Preto. Ou, de repente, numa esquina mais verde do Pelourinho, na Bahia. Coqueiros e cajueiros se revezam com mangueiras –e as placas de rua com nomes de estabelecimentos, surradas pelo calor e pelo tempo, são surpreendentemente familiares. O elegante comércio de roupas masculinas O Senhor. A assistência para máquinas de escrever, em todo seu anacronismo, chama-se J.A. Carvalho. Há as lojas Camota - Tintas, Ferro Etc., o edifício residencial Primavera, a barbearia República, o empório de materiais de construção Pereira Pimenta e (meu favorito) o restaurante Fantasia no Cantinho da Vovó.

Aos poucos, porém, esses mesmos nomes vão ganhando outras cores: hotel The Menino Regency, Marina'a Beauty Parlor, Esmeralda Marina Traders, Pedro Fernandes - Western & Indian Music Instruments. Este último, já indicando que a mistura de línguas não se resume ao inglês com português: Casa Chondakar, joalharia Verlecar, New Punjab - Restaurante Familiar, Narvekar Tailord - Ladies Blouses.

Só um lugar no mundo é capaz de gerar tal confusão –não só semântica, como visual. Numa esquina onde meninos jogam críquete, uma parede de azulejos, dois sáris coloridos cruzam a rua Conde do Redondo (não muito longe da travessa do Magriço). Na frente da capela de São Tomé, uma frota de tuk-tuks estacionada, uma sorveteria com sabores como "malas kulfi" e "mango lassi" ao lado de uma venda de castanhas de caju por quilo.

O lugar é Goa, aquele canto da Índia que um dia já falou português –e que, timidamente, só se você insistir muito, ainda olha esse passado com um pouco de... saudade. Aliás, uma das poucas palavras (e sensações) que ficaram do seu passado colonial.

Estive lá pela primeira vez no final dos anos 1990 e voltei no mês passado. Pouca coisa mudou. Eu diria até que, se notei alguma diferença, encontrei mais pessoas falando português. Estaria Goa experimentando uma onda retrô, após o bloqueio a tudo que se referia a Portugal depois que o território deixou de ser colônia, nos anos 1960?

Dificilmente. Apesar das curiosidades que listei acima, ao viajar ao longo daquela costa voltada para o oceano Índico –com águas puxando não para o azul ou o verde, mas para o marrom-, não se pode negar que Goa é, sim, território indiano.

Tanto que, para encontrar uma boa feijoada, tive um certo trabalho. Foi preciso buscar uma receita de Maria Celeste –uma goense que já trabalhou na embaixada brasileira em Nova Déli– para eu poder experimentar um resquício daqueles laços que um dia uniram esse canto do mundo ao Brasil. Esse prato que é tão nosso ali ganha uma linguiça mais apimentada e um caldo bege. E mais um punhado de temperos locais, que Vasco, que é filho de Celeste e não fala português (mas manda bem em inglês, hindi e "konkani", a língua local), sabe aproveitar como ninguém no seu restaurante (o tal Fantasia).

Mas esse estranho deslocamento nos convida a viajar para outros destinos e outras épocas. E essa mescla única fica ainda mais visível quando você olha de perto as manifestações religiosas.

Não é difícil encontrar, numa mesma quadra, um templo hindu e uma capela católica. Mais uma vez o que deveria causar estranhamento encontra uma inesperada harmonia. A ponto de o visitante já nem se espantar mais quando, ao visitar a imponente catedral de São Francisco Xavier, em Velha Goa –onde está o relicário do santo–, no meio do amontoado de lembranças que se pode comprar ao lado do lugar sagrado, encontra na mesma prateleira uma imagem de Cristo junto com a de um Ganesha.

Ali, num canto do Bom Jesus Shopping Complex...


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