Folha de S. Paulo


O mistério do 'gado-gado'

No momento em que você lê isso, estou terminando uma viagem gastronômica pela Índia. O que é, para usar uma expressão com a qual gosto sempre de brincar, uma espécie de "esporte radical" para quem procura um turismo fora do convencional.

Uma noite dessas, só para dar um exemplo, atravessava a parte muçulmana de Old Déli (a cidade antes de os ingleses chegarem e construírem a "Nova" Déli), com meu grande amigo indiano e uma brasileira que eu havia conhecido apenas horas antes, dentro de um "tuk tuk" furioso, procurando o melhor kebab de todo esse país. Ou pelo menos era isso que meu amigo me assegurava em meio às buzinas, que são a marca registrada do trânsito indiano. Eu falei que eram mais ou menos 22h?

Enfim, achamos o tal kebab –e era mesmo divino! Quero muito contar sobre isso, mas, inspirado pelos sabores da culinária da Índia, comecei a me lembrar de outras refeições memoráveis mundo afora, tanto as que me deram um enorme prazer como aquelas que se tornaram inesquecíveis pela sua estranheza.

Uma pergunta comum que as pessoas me fazem quando se lembram que já visitei mais de cem países é: qual o prato mais esquisito que já comeu? (Eu sempre acho isso estranho –o fascínio que todo mundo tem não com as delícias que nossa capacidade de criar iguarias oferece, mas com o que há de mais bizarro ao paladar.)

Tenho duas respostas: "balut" e um cozido de miúdos de macaco (!). Este último dispensa explicações. Vou só acrescentar que o experimentei no Timor Leste e que é uma receita requintadíssima, uma vez que as carnes são cozinhadas por horas, seladas num bambu. Ah! Devo dizer também que não é muito gostoso...

Já o "balut" merece mais detalhes. Parte da dieta filipina, ele é vendido nas ruas como cachorro-quente e também em restaurantes sofisticados, preparado de várias formas e com temperos diferentes. O que provei era carregado no alho, minha saída para encarar o que, no final das contas, é um ovo de pato fecundado. Ou, se você preferir, um feto!

Tem biquinho, tem peninha, tem asinha, tem patinha –e tem uma consistência horrível. O gosto, nem tanto. A memória que ficou, como disse, é do alho. Mas a tremedeira das mãos ao levar o "balut" para a primeira mordida e as voltas que dei com aquilo na minha boca são inesquecíveis. Mesmo depois de 12 anos...

Entre o estranho e o saboroso, porém, lembro-me ainda de um prato chamado "gado-gado" (duplamente oxítono: gadô-gadô), que degustei em Bali, quando lá passei nos anos 1980. Depois encontrei-o em vários outros lugares, sobretudo na Malásia. Mas foi em Bali, ao lado da pousada que me hospedei em Ubud, que ele chamou minha atenção pela primeira vez, a princípio pela descrição de seus ingredientes no cardápio do restaurante simples onde eu comia quase todo dia: "'Gado-gado' –frango, carne, porco, peixe, ovos, amendoim, arroz, cebola, frutas, lentilhas, tomates, milho– sempre diferente".

Sempre diferente? Não resisti. Pedi no primeiro dia e estava uma delícia. Uma espécie de arroz frito "com tudo", realmente bom. Voltei lá no dia seguinte, pedi o mesmo "gado-gado" e"¦ veio diferente! Ainda saborosíssimo, mas era outro prato. No outro dia, a mesma coisa –ou melhor, uma coisa diferente.

Comia isso quase que diariamente, até que, num almoço, depois de já ter pego intimidade com o pessoal de lá, criei coragem e perguntei: afinal, qual era o segredo do "gado-gado"? Com um daqueles sorrisos largos que só os balineses sabem dar, a mulher me respondeu, não sem uma ponta de ironia: "É só juntar tudo que está sobrando na cozinha".

E foi assim que descobri que uma das coisas mais gostosas que já experimentei no mundo era um punhado de restos... Até que então eu comi o kebab do Karim em Nova Déli –mas vamos deixar isso para uma outra refeição.


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