Folha de S. Paulo


Fui visitar um amigo em Bruxelas...

Quando o acaso interfere em uma viagem, em geral é para ressaltar que algo surpreendentemente bom aconteceu num destino. Você está na Caverna dos Mil Budas em Mianmar bem na hora de uma oração. Um mosteiro fechado há décadas abre para restauração justo quando você passa por Meteora, na Grécia. Uma geleira se desprende na sua visita a Punta Arenas, no Chile. Uma leoa atravessa a estrada com três filhotes na frente do seu carro numa reserva na Namíbia. Mas e quando uma bomba explode no aeroporto de uma cidade 10 minutos antes de você chegar lá de trem?

Culpa do acaso também, claro, só que não de uma maneira positiva. E foi exatamente isso que aconteceu comigo há pouco mais de duas semanas, quando chegava a Bruxelas às 9h15, num trem vindo de Paris. O anúncio foi feito com os vagões ainda em movimento, e as primeiras expressões que vi nos rostos dos meus colegas passageiros não era de terror, mas de sarcasmo incrédulo.

Ou pelo menos foi assim que traduzi aquelas risadas nervosas. Recolhendo suas bagagens de mão, as pessoas se entreolhavam como que dizendo: "Até aqui?". Mas claro que sim: a Bélgica –e mais especificamente sua capital– entrou na rota do terrorismo há anos, se não como um alvo, pelo menos no papel de incubadora de células de terror.

Como se lia com frequência nas reportagens sobre o assunto desde o 13 de novembro em Paris (quando 130 pessoas morreram em ataques quase simultâneos), era uma questão de dias até o terror chegar a Bruxelas. Até que esse dia chegou –e eu cheguei junto com ele.

Eu passaria menos de 12 horas na cidade. Programei-me para rever alguns pontos turísticos que visitei mais de 30 anos atrás. Sim, o Atomium estava na lista e o Manneken Pis também. O mais importante era o almoço no novo restaurante onde um amigo meu, sommelier em Paris, trabalhava agora. Foi ele que havia insistido para que eu pegasse o trem e passasse o dia por lá.

Os planos obviamente mudaram mesmo antes de eu deixar a estação de trem. Caminhando pelas ruas que ainda estavam cheias –pelo menos até o anúncio das explosões também no metrô–, era possível sentir uma atmosfera que involuntariamente fazia homenagem ao pintor surrealista belga René Magritte: a manhã mais parecia um entardecer...

O barulho das ambulâncias passando me tirou do torpor e fez com que eu percebesse que ali era preciso –não só possível, como necessário –ter a iniciativa de uma cobertura jornalística, nem que fosse por uma emissora chamada "rede social". Comecei a reportar quase que por inércia –e logo essa atividade tomou conta de toda a minha visita.

No meio da tarde, estava claro que eu não sairia aquela noite de lá –meu bilhete de volta, já uma relíquia inútil de um dia turbulento. A única possibilidade de retorno a Paris seria na tarde do dia seguinte, na carona que um assessor parlamentar me ofereceu depois de uma entrevista.

O inesperado dia de trabalho descartou todos os passeios turísticos, mas felizmente não o almoço no excelente Classico, o novo restaurante do meu amigo, que teimosamente ficou aberto. Bem como o bistrô onde tomamos um copo já bem tarde, e que na parede tinha um pôster com o incômodo (para aquele momento) trocadilho: "Terroirist", numa referência aos vinhos que ali degustávamos –"terroir".

De tão incômodo, o silêncio da madrugada não me deixou dormir –e, nas primeiras horas frias desse "dia seguinte" em Bruxelas, subi por escadas ainda vazias até o Palácio da Justiça, de onde, se me lembrava bem, tinha-se uma bela vista.

E lá estava a cidade, quase bonita, despertando assustada. Minha memória, dessa vez, não me tinha faltado –a não ser por um pequeno detalhe: um grafite surreal na bancada do miradouro onde se lia "Ceci n'est pas une point vue" ("isso não é um ponto de observação").

Magritte nunca foi tão necessário...


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