Folha de S. Paulo


Despachos de um país sem governo

Já era tarde da noite e, na porta do hotel, luzes apagadas e um grupo de caras enfezadas. Uns dez (20?) homens barravam a entrada de qualquer hóspede –não que houvesse muitos. Numa língua que não estávamos acostumados a ouvir (e muito menos compreendíamos), as ordens vinham furiosas. Parecia que queriam um pedágio ou coisa assim. O motorista desceu para negociar.

Não que a chegada àquela capital tivesse sido menos turbulenta. Não falo do voo, que foi relativamente tranquilo, mas do desembarque num aeroporto que mais parecia uma cisterna improvisada, das malas que eram trazidas dependendo da boa vontade de um suposto oficial da alfândega que as guardava numa esteira rolante imóvel (surpreendentemente atento em meio a uma gritaria caótica), da súplica dos que chegavam às autoridades de imigração para que eles permitissem a entrada no país (uma etapa tortuosa mesmo para quem tinha visto), das inúmeras tentativas de extorsão no curto trajeto entre a saída daquele casebre que nos recebeu e o carro do motorista que nos esperava.

Motorista este que havia então conseguido liberar nossa entrada no hotel. A única luz no saguão vinha de trás do balcão da recepção, onde um constrangido concierge –aparentemente o único funcionário naquele turno– nos deu boas-vindas. Um gerador garantia a luz na ponta de um corredor distante do primeiro andar. E ao nos entregar as chaves do quarto, ainda anunciou sem uma ponta de ironia que a piscina estava aberta se quiséssemos refrescar o calor, forte mesmo na madrugada avançada. Por que não?

Porque lá era o domínio dos morcegos –mas isso só descobri quando já era um refém daquelas águas mornas, calculando cuidadosamente o ângulo que minha cabeça deveria ficar para fora da piscina sem esbarrar na rota daquelas criaturas que voavam livres como num céu em dia de campeonato de pipas. Não foi fácil dormir depois de tudo isso. O dia de reportagens seria longo nesse país que, quando visitei com minha equipe já não tinha ordem, nem sequer progresso.

Governo até tinha –nominalmente. Estávamos lá com a ajuda de, digamos, autoridades que supostamente nos dariam as boas-vindas e mostrariam as belas coisas de lá. Mas não era fácil encontrá-las.

No mercado principal da cidade, barracas vendiam carnes magras e legumes, idem. Só as moscas pareciam interessadas, mas sem fazer muita distinção entre mercadorias e crianças subnutridas nos colos das mães pedintes (ou soltas pelas ruas). Uma entrevista com um comerciante brasileiro, que ali havia tentado a sorte com um restaurante, tornou-se uma ladainha de desesperança.

Encontramos um pouco de alegria apenas na arte, ao visitar um grupo de atores que trabalhava com um famoso diretor de cinema. A beleza dos trançados nas cabeças das meninas e a elegância dos pescoços altivos dos rapazes criavam uma das poucas visões realmente memoráveis da viagem. Fica a lembrança da estranha cachaça de caju que tomei com essa turma.

De resto? Trouxe só uma belíssima escultura em metal que comprei ali mesmo no saguão do hotel e um punhado de retratos de uma sociedade que, abandonada pelos seus governantes, tinha perdido o rumo. Nos anos seguintes a essa visita (1998), o desgoverno triunfou: fez daquele país até um portal de drogas para toda a Europa. Hoje parece que as coisas estão estáveis por lá –ainda que sem nenhuma perspectiva de crescimento, de avanço, de vida decente.

Este país sobre o qual escrevo aqui hoje é a Guiné-Bissau. E qualquer semelhança com qualquer outro lugar –atual ou no futuro– é fruto de sua fértil imaginação. E se, como digo sempre, não tenho saudades de lá, não é por falta de compaixão por aquela gente que me recebeu tão bem, mas por medo de me lembrar dessa visita como se estivesse olhando num espelho distante...


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