Folha de S. Paulo


Cheguei de Pão de Açúcar

Dá trabalho chegar lá. Da capital mais próxima, são cerca de três horas de carro. Logo depois de Belo Horizonte, uma placa de estrada –que nos anima quando o cansaço começa a aparecer– informa que, antes de alcançarmos o destino, é preciso passar por Palestina. A enigmática "S. do Ipanema" fica para o outro lado –é bom não errar. Melhor ainda: para não ter dúvida, é só procurar o Cristo Redentor. Aí sim, passando Mato Grosso, você chegou em Pão de Açúcar.

Não, eu não estou aqui insultando a gramática, embora esse pensamento talvez tenha cruzado sua cabeça já no título de hoje. Muito menos estou zombando da geografia. As indicações que dei acima, bem como o nome de todas as cidades de referência, existem. Ficam logo ali, no Estado de Alagoas. E foram a alegria da minha viagem para explorar uma parte do rio São Francisco –justamente aquela em que ele divide este Estado de Sergipe.

O objetivo final era um vilarejo com um nome ainda mais encantador: Ilha do Ferro. Que não se trata de um pedaço de terra cercado de água por todos os lados, mas de um povoado ribeirinho, às margens, é claro, do Velho Chico. E se uma placa que que encontrei na cooperativa de bordado das prendadas mulheres de lá está correta, para tudo realmente existe uma explicação. Nela está escrito:

"Fernando descobriu como surgiu o nome de Ilha do Ferro em 2003. Foi a primeira casa porque tinha o sobrenome Sandes Ferro.

O 1º dono é de 1600.

O 2º dono é de 1700.

O 3º e o 4º dono é de 1800.

O 5º e o 6º dono é de 1900. [sic]

O 1º dono foi Chicório.

O 2º dono foi Chicodósio.

O 3º dono foi João Gomes.

O 4º dono foi Belo Teixeira.

O 5º dono foi Elísia.

O 6º dono foi Mariquita Torres."

Que Brasil maravilhoso! Quanto mais longe vou no mundo, mais renovo a certeza de que essa inventividade e essa capacidade de transformação que encontramos aqui são algo exclusivo do brasileiro.

A tal cidade que lembrava a praia da garota de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, como logo descobri, era Santana do Ipanema. Ali ao lado, outros lugares de nomes ainda mais poéticos: Olho d'Água das Flores, Jacaré dos Homens. E outros ainda mais evocativos na sua simplicidade... Caboclo. Boa Sorte. Marcação.

Se eu ficar só nisso, porém, mal vai sobrar espaço para contar da verdadeira beleza que vi naquele lugar. Que é, como você pode imaginar, a gente que encontrei por lá. Meus guias eram Maria Amélia e Dalton; ela de Maceió, ele de Goiânia. O casal tem uma galeria na capital alagoana, onde expõe os trabalhos de artistas que descobrem pela região. Em especial do Walmir, que aprendeu tudo com seu sogro, Mestre Fernando, que era um grande mestre escultor. Que é pai da Rejania, bordadeira de um ponto (o "boa-noite") que só existe lá na Ilha do Ferro...

Comendo pitu na simples casa de Amélia e Dalton, as histórias não paravam de brotar. E falo só das que eu entendia, pois o sotaque de lá pode ser cruel com essa gente da cidade grande.

Tem o "causo" de Zezão, o grafiteiro que trocou temporariamente os esgotos de São Paulo pelas casas coloridas de Ilha do Ferro. Outro do "seu" Renato (Imbroisi), que juntou as bordadeiras na tal cooperativa e deu outra dimensão ao trabalho delas. Um punhado de histórias de cemitério –o grande contador de histórias, Zezinho, é também coveiro! E Urânia, filha de Walmir, enche a sala com mais beleza quando chega para pedir uma selfie comigo...

Retiro-me para o quarto com todas essas imagens, e quando deito no travesseiro, lembro-me de mais uma: a do Cristo Redentor daquele lado do rio. Se este não tem a imponência daquele do outro Rio, a natureza vem socorrê-lo para cercar o céu com um crepúsculo com mais de 50 tons de laranja. Tudo fica bonito.

E então eu durmo.


Endereço da página: