Folha de S. Paulo


Foi bom no Uruguai, não foi?

Se você não se lembra de um lugar para onde viajou, esteve mesmo por lá? Lugares e memórias são coisas inevitavelmente próximas na trajetória de um viajante. Histórias florescem de uma foto, um souvenir dá origem a um caso, às vezes basta uma música para rever todo um itinerário. Mas o quanto disso é fabricado e o quanto realmente aconteceu?

Milhões de propagandas e artigos em publicações de turismo (em papel ou virtuais) já usaram o clichê "uma viagem inesquecível"... Mas nós sabemos que nem todos os destinos, nem todas as travessias são assim: há duas maneiras de você "esquecer" uma viagem -ou pelo menos os detalhes delas.

A primeira é quando você vai para vários lugares diferentes num curto espaço de tempo. Quando dei minha primeira volta ao mundo, em 2004, passei por quase 20 países -e um número ainda maior de cidades, num período de cerca de quatro meses. É pouco, acredite. Por causa disso, tenho até hoje a sensação de que trechos inteiros desse roteiro estão enterrados em algum canto da minha mente. Quando escrevi um livro sobre a aventura, brincava que era como se eu estivesse abrindo arquivos de uma memória comprimida -e que alguns abriam com defeito..."

A outra maneira de esquecer tem a ver, claro, com o tempo que passa. Fiz as primeiras viagens internacionais já aos dez anos -o que, para poupá-lo de fazer cálculos com uma pesquisa virtual, quer dizer que fui procurar novos horizontes há 42 anos (quase 43). O primeiro país dos 101 que visitei foi a Argentina.

Lembro-me de boas partes dessa viagem -especialmente do pessoal do hotel que nos hospedou apelidando a mim e a meus dois irmãos de "los diablitos", de tanto que aprontávamos pelos corredores. Depois, já voltei tantas vezes a Buenos Aires que tenho uma espécie de "memória contínua" das minhas visitas. Mas e meu segundo destino internacional?

Bem, foi o Uruguai -estive lá em 1974 e nunca mais voltei. Isso é, tecnicamente revisitei Punta del Este -onde estive na primeira vez- por 48 horas, 20 e tantos anos depois, para uma reportagem. Mas a capital, Montevidéu, só mesmo há 42 anos! E o que me recordo de lá? Vejamos..."

Prédios clássicos e imponentes. Avenidas amplas e bastante arborizadas. Uma carne maravilhosa. Uma luz generosa por todo canto. Mas, honestamente, eu poderia dizer as mesmas coisas sobre Buenos Aires. Ou simplesmente ter construído essas frases olhando para imagens da capital uruguaia na internet.

Não tenho dúvida nenhuma de que estive por lá -minha família confirma isso e, a menos que estejamos todos num delírio coletivo, deve ser verdade. Mas hoje, mais de quatro décadas depois, tenho que confessar que memória e imaginação nessa viagem são quase a mesma coisa.

Com Punta é um pouco diferente. Tenho registros mais fortes da visita no meio dos anos 90, quando, por causa do trabalho, fiquei num hotel de alto luxo -que também era um cassino. Fui às festas descoladas, tomei drinques nas poltronas nas areias, tirei fotos na escultura dos dedos na praia Brava. Mas será que esses lugares estavam lá em 1974?

Tive de ir à Wikipédia para ter a resposta: a tal obra de arte (do chileno Mário Irarrázabal), só foi inaugurada em 1982. A moda dos sofás na areia decolou apenas nos anos 1990 -e o único detalhe em que minha memória não me traiu foi no hotel em que fiquei com minha família: uma lúgubre construção no estilo tudor (assaz deslocada naquele clima de veraneio).

Esse é o punhado de recordações que ofereço quando -com frequência até perturbadora- alguém pede dicas do Uruguai (supondo sempre que é um destino que conheço bem). Sem graça, mal consigo esboçar algumas dicas e logo pontuo: "Taí um lugar para onde preciso voltar".

E quem sabe descobri-lo como um novo..." Talvez meu 102º país?


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