Folha de S. Paulo


A Londres de Bowie

Uma vez eu acho que vi David Bowie numa rua de Nova York. Era o final dos anos 1990, "downtown" (como é chamada essa parte da cidade, abaixo da rua 14), e eu vi –ou, novamente, acho que eu vi– primeiro sua mulher, a modelo Iman. Eles estavam (se é que estavam) a menos de 100 metros de mim, na calçada oposta, e mesmo para quem está acostumado a encontrar celebridades nas esquinas de Manhattan, a possibilidade de se deparar com Bowie era um evento.

Não preparei a câmera para a selfie –ninguém nem pensava nisso na época. Porém, tentando achar o melhor caminho para me aproximar do casal, desviei o olhar por alguns segundos e... eles desapareceram. Talvez entraram numa loja ou num táxi. Mas só o fato de eu ter quase realizado um sonho de adolescência já tinha me deixado com a sensação de estar flutuando.

Sou um fã tardio de Bowie. Lembro-me de ter ganho o álbum "Pin Ups" de aniversário –um presente talvez tão precoce para um garoto de dez anos que nem dei a devida atenção. Mas, em 1980, "Scary Monsters (and Super Creeps)", digamos, "fez o trabalho". E o que ajudou bastante é que, no mesmo ano, eu fiz minha primeira viagem a Londres. "Ashes to Ashes" tocava repetidamente em tudo quanto era rádio (era assim que a gente ouvia música "antigamente"!) e eu fui "contaminado" sem muita resistência.

Voltei para o Brasil disposto a tirar o atraso –o que fiz com gosto. A tal ponto que, quando voltei a Londres, quatro anos depois, tinha elaborado um roteiro bem detalhado de lugares que gostaria de visitar porque faziam parte da história de Bowie. Estou falando, é claro, de uma época pré-internet, em que as pesquisas não estavam exatamente a um clique no seu computador.

Consultando livros e biografias, cheguei a uma lista de quatro lugares significativos da carreira do artista. Comecei por Carnaby Street, que está lá até hoje, menos como marco histórico do que como "curiosidade fashion". Mas, nos anos 1970, era ali que Bowie ia procurar inspiração para seus looks mais ousados –pensando bem... qual não era ousado?

Nos anos 1980, as ruas desse minibairro me pareceram um pouco decadentes. Mas isso não ia me fazer desistir do meu roteiro, e em seguida eu fui até uma ruela chamada Heddon Street, considerado o "berço" de Ziggy Stardust, um de seus personagens mais memoráveis.

Também fui ao Marquee Club (hoje fechado), o primeiro lugar em que Bowie tocou, ainda um total desconhecido. Dessa vez não entrei, mas em duas outras viagens a Londres fui lá para ver shows no famoso palco –antes de ele fechar em 1996. E terminei na frente do Café Royal, na Regent Street, onde, já famoso, ele dava altas festas (eu, na época, não tinha dinheiro nem para um café por lá"...).

Não vi Bowie em nenhum desses lugares: em 1984 ele estava no auge do sucesso pop, com "Let's Dance", e provavelmente cumpria uma turnê com ingressos esgotados em algum lugar do mundo. Mas aquele fã de 20 e poucos anos saiu de Londres feliz com a experiência.

Nesta semana, com a notícia da sua morte logo pela manhã de segunda-feira, lembrei desse itinerário e me perguntei qual o sentido de ter dedicado todo esse tempo (sempre curto nas férias!) só para me sentir mais próximo de um ídolo. Bem, se você também é fã de alguém, sabe que não é possível responder racionalmente a essa inquietação.

Bowie foi embora com a elegância da evolução de uma de suas melhores músicas, "Aladdin Sane": depois de um refrão que é um lamento, vem um labirinto musical (a maior parte da canção) e tudo termina em quatro notas no piano: rápidas, puras, tranquilamente nervosas e precisas. Como as pegadas que ele deixou por Londres –e pelo mundo...


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