Folha de S. Paulo


Viajar sem medo

A beleza de Paris e os valores que fundaram a cidade são mais fortes que o terror após os atentados

Na quinta-feira da semana passada, eu estava em Paris. A caminho de tomar um último copo, durante uma breve visita à cidade, quis voltar a uma das minhas caves favoritas: a do restaurante Septime, uma das mesas mais impossíveis da cidade, mas cujo balcão de vinhos é não só acessível como aconchegante. Sempre tem um lugar nos banquinhos do Septime Cave.

O lugar fica no 11 –para usar a localização mais comum com que parisienses se orientam na sua cidade, que é (estranhamente) dividida por bairros numerados não de maneira linear, mas em uma sequência que forma um caracol no mapa urbano. E o 11, que também é identificado como a região da Bastilha, é uma das áreas mais boêmias dessa cidade que praticamente inventou a boemia.

É ali que turistas e parisienses se encontram para "un verre", um copo, às vezes antes, às vezes depois de outro programa: um jantar, uma festa, um show de música. Moleque ainda, mochileiro em Paris, descobri ali o Balajo, uma pequena casa de espetáculos, onde tocavam as bandas que sempre indicava a revista "Actuel", minha leitura obrigatória nos anos 1980.

Zanzei naquela rue de Lappe, onde até hoje resiste o Balajo, tomando cerveja barata, fingindo que não estava congelando, me apaixonando em cada esquina, celebrando a alegria de estar em uma cidade que sempre foi uma festa.

Uma festa que foi interrompida na semana passada –e não estou usando uma figura de linguagem. Em cafés como muitos que frequentei, em restaurantes de ruas que andei na própria quinta-feira passada, em um palco não muito diferente do Balajo, terroristas transformaram inocentes pessoas que estavam ali para se divertir em vítimas fatais, em uma sequência de terror que você certamente acompanhou nos últimos dias.

De uma hora para outra, a cidade, cujo ruído feliz eu ainda podia ouvir no avião pouco antes de embarcar de volta para o Brasil, há apenas sete dias, ficou calada. Ficou triste. Ficou sem festa.

Mas não ficou sem alma. Por tudo o que li sobre a reação dos parisienses à tragédia, pelas mensagens que troquei com amigos (brasileiros e franceses) que estão lá, por todas as entrevistas que vi na televisão e na internet, Paris continua forte.

Mais fortificada também, é verdade. Mas segue aberta para os milhões de turistas que vão continuar a visitá-la. Porque a beleza dessa cidade e dos valores que ajudaram a construí-la são mais fortes do que o medo que a estupidez quis impor com o terror de uma bala e nos fazer crer que essa é a tônica do mundo.

Não é. Aprendemos, em anos de civilização, a viajar com os braços abertos, a entender que a troca é mais interessante que o confronto, e que a curiosidade sempre vence a ignorância. E é isso que nos move.

Como viajante apaixonado, mais de uma vez fui perguntado se já visitei algum lugar onde me sentisse inseguro, ameaçado. Sempre respondo que não, não viajo com medo.

É um mundo terrível, cheio de perigos –e de pessoas que fazem esses perigos naturais parecerem brinquedo. Mas é também um mundo incrível, onde a mesma natureza que eventualmente nos assusta se esforça para nos maravilhar. E onde o mesmo ser humano que ensaia roubar para sempre nossa capacidade de admirá-lo contribui para que esse mundo seja mais belo, mais acessível, mais receptivo, mais feliz.

Se você deixar, o medo aparece em qualquer canto, em qualquer esquina. Mas acima dele está nossa incrível vocação para superá-lo. E ver beleza, ver alegria. E nos apaixonar no meio de um deserto, ao pé de uma cachoeira, numa calçada de Madri, atravessando o Bósforo de barco, no luar da Namíbia, num hotel em Buenos Aires, numa loja de brinquedos em Nova York, num bangalô em Belize, num riad em Marrakech ou no banco de trás de um táxi que você pegou numa madrugada gelada para levar quem você ama ver a torre Eiffel cintilar na hora cheia.


Endereço da página: