Folha de S. Paulo


As portas de Túnis

Logo abaixo das informações em árabe era possível ler em francês: "Doutor Ali Baba – especialista em ginecologia e obstetrícia". A placa estava bem na entrada de um prédio ordinário de Túnis, mas ao lado de uma porta magnífica –que foi, aliás, a primeira coisa a me chamar a atenção.

Não fosse por essa porta –de um azul forte, com desenhos delineados por enormes tachas– eu mal teria reparado na estranheza de, primeiro, encontrar num país muçulmano (e observador das suas tradições) um ginecologista do sexo masculino, e, segundo, com um nome tão peculiar...

Era meu terceiro dia na capital da Tunísia, e eu já deveria estar acostumado com essa visão –afinal, são tantas portas, em tantas casas caiadas, com tantas cores e tantos desenhos"¦ Mas não: o olhar de quem conhece Túnis pela primeira vez não se cansa de reparar em cada uma delas –de tão bonitas e tão diferentes.

E olha que a concorrência é acirrada, pois há tanta coisa bonita para ser ver. Não só na cidade em si, mas também nas ruínas de Cartago, uma esplendorosa cidade da Antiguidade que eventualmente caiu diante do Império Romano.

Andei por tudo ali com uma estranha sensação de deslocamento. Nós estamos acostumados a ver relíquias romanas pela Europa, mesmo além da Itália. Mas ali na África? Essa dissonância trazia uma curiosa (e anacrônica) atmosfera de cosmopolitismo –expressão que só seria inventada séculos depois do apogeu de Cartago.

Nessa bem-vinda cacofonia, eram sempre elas que se destacavam, as portas de Túnis: altas, como se projetadas para receber um cavaleiro montado em seu cavalo, e com um arco redondo no seu topo –como se uma lua minguante repousasse sobre duas colunas.

Elas eram o respiro colorido da quieta paisagem urbana, onde cafés com nomes improváveis como Lido e com suas mesas povoadas apenas por homens, pareciam reforçar a sonolência das tardes quentes da bela capital. Uma tranquilidade que, posso imaginar, é bem diferente do clima que Túnis vive nos últimos dias.

Minha passagem pela Tunísia foi há alguns anos. Antes, portanto, de o país ter sido o berço da Primavera Árabe e certamente antes dos atentados recentes: um em março, ao museu Bardo (que tem a mais bela coleção de mosaicos antigos que já vi), na capital, e outro na semana passada, em um hotel de praia em Sousse, que deixou 38 vítimas fatais.

Quando escrevi a primeira versão desta coluna, este último ataque ainda não havia acontecido. Nessa versão, eu evocava as cores das portas de Túnis como lembranças poéticas da intimidade da vida cotidiana de uma cidade, que a maioria dos turistas de passagem nem sonha em conhecer.

Diante das tragédias recentes, porém, repensei o sentido delas. A cidade que eu queria celebrar por sua beleza vive agora dias tensos, tristes –e certamente vazios, já que o turismo, depois de um ato terrível como esse, tende a desaparecer por um tempo.

As portas agora servem talvez como abrigo, um conforto para um isolamento inevitável e reparador. Mas torço para que logo elas voltem a ser não um escudo, mas um estandarte do fascínio que Túnis é capaz de exercer em quem passa por lá.


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