Folha de S. Paulo


Berlim com e sem muro

Talvez aquele fosse o dia mais frio que eu já tinha vivido na Europa. Ou talvez eu estivesse sendo sugestionado pela gélida experiência de passado pela fronteira subterrânea do muro de Berlim –quando ele ainda existia, claro. Eram meados dos anos 1980, e eu nem tinha ido lá para isso: fui visitar uma artista plástica que conheci numa Bienal de São Paulo, Hella Santarossa, e que havia me oferecido pouso e arte. O muro era só um detalhe –que estava louco para cruzar.

Já brinquei (aqui mesmo neste espaço) que na minha contagem de países que conheço, tem sempre um número "quebrado" –atualmente estamos no 101,5. E o muro tem a ver com isso: conheci a Alemanha Oriental, passando para "o lado de lá" de Berlim –que também era dividida.

Visitei o "país" antes de ele se reunir com a República Federal da Alemanha –e tudo voltar a ser como era antes de 1949, uma só nação. Mas será mesmo que conheci dois lugares diferentes naquela época? Não tenho dúvidas.

Fiquei quase 20 anos sem visitar a cidade. Voltei no ano em que a Copa do Mundo era na Alemanha e tive uma espécie de "dissonância cognitiva". Minhas lembranças da "era do muro" eram bem diferentes da energia que eu encontrava naquelas mesmas ruas –em especial numa certa Alexanderplatz...

Naquela manhã gelada dos anos 1980, depois de ter recebido um carimbo no passaporte e trocado um punhado de dinheiro –marcos "orientais", que eu fui obrigado a gastar por lá– andei pela praça tentando entender um novo conceito de solidão.

Virtualmente ninguém olhava para mim –nem mesmo a assistente da lanchonete onde tomei uma sopa aguada ou o vendedor da única loja que entrei e comprei um CD de Beethoven. Ou as mães que levavam seus filhos para casa. Ou os homens encapotados como que esperando para virarem personagens num livro de le Carré.

Em 2006, a mesma Alexanderplatz era quase um parque temático germânico. Toda a energia redescoberta daquele lugar, algo sobre o qual eu tinha apenas lido, desfilava diante dos meus olhos. Vinte anos antes, eu só encontrara isso na Berlim ocidental, nos cafés e concertos a que Santarossa me levava. Agora eu estava em outra cidade, mais interessante, mais vibrante. E que me convidava a voltar.

Fui a museus que nem sabia que existiam. Comi bem melhor do que daquela primeira vez. Passeei de bicicleta pelo que um dia tinha sido Berlim Oriental –e vi paisagens que ainda eram tristes (apesar de um radiante sol de primavera), mas que tinham uma promessa de algo novo. E que me contagiou na proporção inversa em que a cidade tinha me repelido duas décadas atrás.

Há 30 anos, quando cruzei de volta aquele muro, num dia que já havia virado noite no meio da tarde, não podia imaginar que na outra vez que estivesse por lá veria um pedaço dele sendo vendido como suvenir –nem que aquela Alemanha seria um mero decimal no meu placar de viagens.

Mas se existe beleza em revisitar lugares que você já conhece nesse mundo, é descobrir que seus habitantes têm sempre a capacidade de transformá-lo. Com um pouco de sorte, para melhor.


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