Folha de S. Paulo


Terra de Montrond

Num país composto por ilhas que têm nomes tão sinceros como Sal e Brava –e cuja capital é Praia–, um nome como o de Daniel Montrond chama a atenção. Sobretudo porque eu o conheci num vulcão chamado Fogo.

Ok, tecnicamente Fogo também é uma ilha –talvez a mais curiosa do arquipélago de Cabo Verde. Mas toda a superfície dela é formada pelo vulcão, que subiu há uns tantos milhões de anos naquele canto do Atlântico (bem perto da África ocidental), a uma altura de respeitáveis 2.800 metros. E que ainda está em atividade; quando lá visitei, em 1998, haviam se passado menos de três anos desde a sua última erupção.

Por conta disso, a paisagem que encontrei era única. Ela já se anunciava curiosa desde o duvidoso voo que saiu de Praia (na ilha de Santiago) para pousar apenas alguns minutos depois num canto mais plano da região em que o magma endurecido encontra o mar. Dali, seguia-se por uma via tortuosa para um vilarejo no alto do vulcão, num trajeto que ia mostrando um solo cada vez mais árido. E um clima mais e mais assustador.

Eu tinha a impressão de que tudo ia ficando mais quente também, mas eu devia estar sendo influenciado por um medo não declarado de ter que enfrentar uma rápida evacuação do local, na eventualidade de uma nova manifestação daquela cratera lá em cima... Porém, assim que encontrei Felipe de Montrond, ele me acalmou: "Esse vulcão não é de assustar ninguém", disse-me ele com um sorriso de dentes largos.

Felipe tinha a roupa quase em frangalhos, mas circulava bem pelas ruas do local. Ofereceu-me uma cachaça forte servida num balcão de bar, enquanto me contava sobre a origem do seu nome. Seus olhos azuis profundos quase traíam os traços bem africanos, uma confusão que os cabelos (encaracolados e claros) ajudavam a aumentar. E no seu português meio crioulo –ou "criol", como se diz por lá– essa foi a história que ele narrou.

Que seus antepassados eram franceses, que tinham ido parar em Fogo por conta de um naufrágio, no final do século 19. A família o considerara morto, mas foi ali, em torno daquela cratera, que ele reconstruiu sua vida. Felipe era um parente distante –uma espécie de "sobrinho-tataraneto" desses sobreviventes. Fiquei fascinado com essa narrativa e voltei de lá repetindo-a com um entusiasmo até maior do que o próprio Montrond! Mas depois, como toda lembrança de viagem, ela foi se dissolvendo.

Quando decidi escrever sobre Cabo Verde para esta coluna, fui pesquisar sobre os Montrond de Fogo –e com ajuda dessa ferramenta que estava longe de ser acessível naquela época, a internet, descobri que a "biografia" de Felipe era ligeiramente fantasiosa.

Existiu, sim, um certo conde Armand de Montrond, que, buscando nova vida nas Américas, parou em Cabo Verde, apaixonou-se, e de lá nunca mais saiu. A paixão, no caso, não é figura de linguagem. Clementina, Camila, Demitília, Jose- fa, Antonia, Guilhermina, Jesuína –essas são algumas das foguenses escolhidas do conde, que descobri em rápida busca virtual.

E fiquei me perguntando qual delas seria a "tia-bisavó" de Felipe –que lá deve estar até hoje, com seu calção roto, seus olhos brilhantes e sua cachaça forte, a olhar aquele vulcão como quem diz: "Pensas que é mais forte que meu passado?".


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