Folha de S. Paulo


Nova York, - 22°C

A primeira sensação é na sua bochecha: um tapa de frio. Depois ele vem entrando por onde você está menos protegido: um canto do seu pescoço, a canela onde a meia ficou curta, a coxa coberta apenas por um jeans. Ah, e as orelhas também.

Sim, eu deveria estar com um capuz, um gorro, alguma coisa que protegesse melhor o topo da cabeça. Mas me recuso a usar qualquer coisa que me prive de ouvir todos os sons e ver as coisas dessa cidade que, mais uma vez, tive o privilégio de visitar neste começo de ano. Se bem que nunca num dia tão frio.

Já morei em Nova York, como correspondente desta mesma Folha. Há exatos 26 anos eu chegava à cidade com um grau de excitação que até hoje tenho dificuldade para descrever. Fazia frio também e, ainda tímido no inglês, fui enganado por um taxista que me cobrou o mesmo valor que paguei desta vez –mais de duas décadas e uma certa inflação depois: US$ 70 (R$ 186)– na época, quase 5% do meu salário. Mas quem estava ligando para isso? Eu estava disposto a conquistar a cidade –ou, no mínimo, ser conquistado por ela. Não preciso nem falar o que aconteceu primeiro...

Era outra Nova York. A Times Square ainda era algo assustadora. Lembro-me de levar umas cinco semanas até pegar meu primeiro metrô –até criar coragem de "enfrentar" os supostos perigos, só andava de ônibus. Áreas da cidade como o MeatPacking District eram recomendadas só para os mais corajosos.

Por falar em céu aberto, o estupendo High Line Park –transformado numa das áreas de lazer mais convidativas da cidade– era virtualmente inacessível.

Alphabet City –como era conhecida a parte baixa no leste de Manhattan, onde as avenidas têm letras e não números– era, como dizer?, um antro! Hoje, abriga não só um comércio tentador, como também alguns dos melhores restaurantes. Isto é, aqueles que não foram brilhar no Brooklyn –uma região de Nova York hoje tão celebrada, mas onde, em 1989, me lembro de ter pisado no máximo duas vezes (e sempre para fazer uma reportagem).

Falando assim, parece que viver aqui então era uma espécie de sofrimento. Não era fácil, admito. Mas tinha sempre uma mostra de arte que você podia ver de graça. A cerveja nos shows das bandas que eu gostava de assistir (peguei o CBGB aberto e relevante) não custava mais de US$ 2. Era possível comprar entrada para um show da Broadway por US$ 10 (se bem que para assistir de pé ao espetáculo...). E a simples ação de andar pelas ruas –por mais ameaçadoras que fossem– já trazia uma alegria enorme.

De lá para cá, perdi a conta de quantas vezes visitei a cidade. Inúmeras a trabalho –uma boa dúzia (ou mais) a passeio. E pude acompanhar sua lenta transformação –para melhor. E pude descobrir outros prazeres a cada visita. E pude continuar descobrindo coisas.

Um museu só de arte tibetana! Um sebo de livros de fotos com primeiras edições autografadas por grandes artistas! Uma loja de discos de 78 rotações! Uma estilista indiana que só vende em seu ateliê! Um pote de couve-de-bruxelas frita com creme amargo! Um restaurante com música ao vivo no Harlem! A lista seria grande para citar aqui –e note que falo só das experiências desta última visita a Nova York.

Tenho certeza de que vou voltar a escrever sobre a cidade aqui. E sei também que vou querer enfrentá-la a qualquer temperatura. Afinal, esses 22°C negativos que me receberam neste inverno (esta era a sensação térmica) não são muito piores do que os quase 40°C que massacram a todos no verão –e que, como dizia o jornalista (e humorista acidental) com quem tive o prazer de trabalhar naquele 1989, fazem parecer que tem uma vaca arrotando no seu pescoço o tempo todo.

O autor da comparação? Um certo Paulo Francis –que também me ensinou a gostar de Nova York pelos mesmos motivos que você deveria odiá-la. Mas isso é assunto para uma outra coluna...


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