Folha de S. Paulo


Dias dourados

Valentina Fraiz

Margarida acordou cedo para me pegar no hotel antes que eu embarcasse para o Brasil. Tínhamos nos conhecido na noite anterior, num jantar em que fui apresentado ao seu trabalho junto à Abraço –uma associação criada por ela mesma para ajudar pessoas como a menina que estava agarrada a sua perna naquela manhã.

Era um domingo, 19 de setembro de 2004 –uma data a que eu me referia brincando como "dia dourado", quando eu voltaria ao Brasil depois de mais de quatro meses viajando pelo mundo –num projeto que fiz para o programa que apresentava, o "Fantástico".

Quatro meses –18 semanas, para ser exato– é um tempo muito longo para ficar longe de casa. Mesmo com o fascínio de tudo que eu estava conferindo (os telespectadores escolhiam, a cada domingo, o meu destino seguinte), eu sempre pensava em voltar para meu ponto de partida.

Ao fazer as malas naquela manhã, evitava pensar na palavra "saudade" –não porque seria um clichê, já que eu estava em Lisboa, recém-chegado da ilha da Madeira–, mas porque ela evoca uma melancolia que não cabia bem no que estava sentindo.

Quando desejava voltar para casa, era para lembrar que eu tinha uma referência –um endereço, um CEP, um núcleo onde pessoas queridas me esperavam. Viajar é tudo, mas é bom também ter um lastro. Por isso a brincadeira com o "dia dourado" –o do retorno a tudo isso. E hoje escrevo sobre ele porque dei-me conta de que dez anos já se passaram. O que trouxe algumas reflexões.

Logo que cheguei, amigos perguntavam: "Qual é a próxima viagem?". E eu respondia rindo que, depois de ter dado a volta ao mundo, a fronteira seguinte só poderia o espaço: "A Lua, depois Marte, Saturno...". Mas, além de sem graça, eu sabia que a piada era enganosa. Nossa Terra não se esgota em seus limites físicos. São as pessoas que fazem daqui um lugar de infinitos descobrimentos.

Ao longo daqueles 126 dias (e 103.792 km!), mais que monumentos, conheci gente. Gente de todo tipo, de toda beleza. Gente sobre quem você já leu neste espaço e outras sobre quem ainda vou escrever. Gente que me fez entender o que significa viajar.

Em poucas palavras –precisaria de mais do que este alto de página para um descrição completa–, viajar é conhecer o outro. É imaginar como seria se você estivesse nascido ali, onde você está visitando. É trocar essa experiência. E não deixar nunca de surpreender com ela.

Este último detalhe, compreendi no amanhecer daquela partida. Depois de tantos encontros fascinantes, eu já deveria estar "anestesiado" do encanto de esbarrar em novas pessoas. Mas aí Margarida me apresentou àquela menina.

Pegando-a no colo –ela devia ter três ou quatro anos–, Margarida perguntou: "Ela não é linda?". Linda e carinhosa. Dos braços de Margarida, ela lançou-se em direção aos meus, num inocente pedido para que eu não voltasse e ficasse com ela.

Lembrei-me então que a menina era soropositivo. Soube disso no jantar com Margarida, que era fundadora da associação Abraço (abraco.pt) –uma das mais importantes de Portugal na prevenção ao vírus HIV e no apoio às pessoas portadoras dele. Ela tinha se apegado à menina como a uma filha. E fazia questão de que eu a conhecesse. Por isso estava ali tão cedo no lobby do hotel.

Minha despedida da volta ao mundo foi ter conhecido aquelas duas pessoas incríveis: Margarida, pela sua generosidade; e aquela menina –por quem torço para que esteja bem e com saúde–, pelo seu abraço. E, como um presente de fim de jornada, aqueles bracinhos em volta do meu pescoço transformaram aquele 19 de setembro de 2004 num verdadeiro "dia dourado".

Que é, afinal, todo dia que você conhece alguém especial.


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