Folha de S. Paulo


Carta a Lupicínio

Amigo torcedor, amigo secador, até a pé nós iremos a qualquer botequim ou taverna do rincão gaúcho celebrar este ano o centenário do gênio gremista Lupicínio Rodrigues, o autor de um dos mais belos hinos de clubes do país. Até a pé nós iremos, mesmo com todas as dores de cotovelo do mundo, mesmo estropiado como um romeiro do amor e da sorte.

Bem lembrou, nesta Folha, o querido Luiz Fernando Vianna que o preto Lupicínio cantaria, a essa altura, para a geral tricolor, "esses moços, pobres moços, ah, se soubessem o que eu sei!" Cantaria mesmo. E bonito. Um brinde ao homem dos nervos de aço.

Sim, caro Lupicínio, tu me ensinaste a gastar o cotovelo da espera na fórmica dos balcões dos sofredores. Aliás, a cada pé-na-bunda sempre acho que tu chegarás no boteco e me darás bons conselhos, só vingança, vingança, vingança aos deuses clamar. Mais um brinde, amigo, como te amo.

O que tu achas, meu caro, dessa minha pobre tese crônica: para quem ainda confunde racismo –atacar alguém covardemente pela cor da sua pele– com xingamento de varejo, sugiro, à guisa de criatividade, que leve a campo o "Dicionário do Palavrão e Termos Afins", do pesquisador e folclorista pernambucano Mário Souto Maior, o Aurélio dos lexicógrafos da bela esculhambação à brasileira.

Souto Maior, vivo fosse, faria agora um brinde conosco. Que tu procures ele aí nesse mundo do qual não tenho a menor das certezas. Caro Lupi, nesse livro, o fanático encontrará 3.500 palavrões que valem do goleiro ao ponta esquerda, do técnico ao juiz daquele Flamengo x Coritiba. Somos tão ricos em matéria de tirar onda, por que a injúria racial, minha gente? Sob qualquer aspecto, não carece. Pronto.

Tudo bem que não somos tão criativos quanto os alemães em matéria de xingamentos. O dicionário do mesmo gênero, naquele país supostamente reservado, possui quase dez mil verbetes. Eles também nos batem de 7x1 em matéria de sacanagem. Minha fonte é boa: Gilberto Freyre, o homem do "Casa Grande & Senzala", o mesmo que sugeriu a Souto Maior, a tal pesquisa nos trópicos.

Temos xingamentos demais, de qualquer forma. Que diversidade, incluindo os regionalismos, como "fi de rapariga", por exemplo, clássico nordestino, o meu preferido. Este vale para o juiz, sobremaneira. No sul também não deve faltar palavrões para desopilar o juízo.

A Ponte Preta e o Inter, macaca e macaco, respectivamente, quando assumiram tais epítetos, responderam politicamente ao preconceito. Uma maneira de dizer do orgulho da torcida negra. Em nada autorizaram o ma-ca-co ou "preto fedido" e ditos malditos para humilhar quem quer que seja. Dentro ou fora do gramado, nobilíssimo Lupicínio.

Sei que o amigo deves estar triste com os acontecimentos, mas também sei que o amigo és sábio para entender o exemplo. Até a pé nos iremos, com teu espírito, para dizer paz na terra aos homens de boa vontade.


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