Folha de S. Paulo


Barbosear, o verbo

Amigo torcedor, amigo secador, peço encarecidamente, vamos desbarbosear, enquanto é tempo, o Felipão. Barbosear, o verbo nacional por excelência, caro professor Pasquale, a ação de personificar a catástrofe, maldito objeto indireto brasileiro. Em vez de decifrar as causas do fracasso, sempre encontramos um rosto para um momento trágico.

Então está combinado; eu desbarboseio, tu desbarboseias, nós desbarboseamos.

Evidentemente que contra o preto Barbosa, o goleiro de 1950, a pena foi sem comparações. Foi perpétua e apagou até a assinatura da Princesa Isabel na Lei Áurea.

Cresço eu, cresces tu, crescemos nós quando aprendemos a desconjugar tal verbo. Felipão tem razão em dizer "que saco", como na volta ao palco da tragédia greco-mineira. Deixemos o homem, além do técnico, trabalhar em paz.

É pedagógico, caro Paulo Freire, lembrar sempre das nossas derrotas. É burro, porém, achar que os erros têm feição única. O católico Felipão está longe de ser um Cristo, mas chega de açoitá-lo. Não vejo a mesma fúria contra Marin/Del Nero e todos os quadros em branco e preto na parede cor de anos de chumbo da CBF, a abominável Casa Bandida do Futebol, como na sigla eternizada pelo caro Juca.

Felipão tem o luxo da coragem. Poderia, qual um monge, ter optado por curar a ferida no silêncio, lá longe dos homens de temperamento sórdido, como me sopra aqui o flamenguista Jorge Benjor. Não. Preferiu curar a dor que deveras sente a céu aberto, com milhares de testemunhas nas arenas, nos estádios. É macho. Não de machista, no sentido bom do gênero.

Um homem de moral, de enfrentamento, que dá a cara, um homem à prova de mídia-training e outros truques para enfrentar o poder da imprensa.

Acaba sobrando um pouco do verbo barbosear também para o Fred. Que bobagem. Rolou parecido também em 50. Não ficou apenas no goleiro. O bom é que Fred tem personalidade. Gostei da ideia do atacante de fazer greve, não entrar em campo se a selvageria contra os jogadores do Fluminense continuasse por parte de meia dúzia de destorcedores –vale também, a essa altura das flexões, professor Pasquale, tu que és Juventus nato, o uso e abuso do anti-verbo.

Barbosear é a ação típica do subdesenvolvimento atávico, do viralatismo em busca do vilão da novela. É esquecer até, pasme, a velha culpa do sistema. Vejo em Felipão, ao não fugir um pouco do futebol, uma certa teimosia do capitão Ahab do livro homônimo Moby Dick e mais ainda do filme do John Huston.

É o maior livro-filme sobre a arte de continuar vivo mesmo sabendo que a Velha da Foice anda à espreita. Como é bonito tal peleja, talvez apenas o futebol o repita como metáfora. O futebol é mesmo a vida em estado permanente de hipérbole.


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