Folha de S. Paulo


García Márquez e o futebol

Amigo torcedor, amigo secador, chama a atenção na trajetória do escritor Gabriel García Márquez o gosto tardio pelo futebol. Somente aos 23 anos, retrato do artista enquanto jovem repórter, ele se encantou com uma peleja colombiana: Junior de Barranquilla 2x1 Millonarios.

Quase impossível se conhecer alguém que tenha se tornado torcedor de um time depois de adulto. Acontece. O autor de "Crônica de uma morte anunciada" pendeu para o lado do clube de Barranquilla, cuja estrela naqueles anos 1950 era Heleno de Freitas, personagem recente de biografia de Marcos Eduardo Neves ("Nunca houve um homem como Heleno", Ed. Ediouro) e do filme dirigido por José Henrique Fonseca ("Heleno - O príncipe maldito).

No seu batismo de fogo futebolístico, García Márquez escreveu, no texto "El Juramento": "O primeiro instante de lucidez em que me dei conta de que tinha virado um torcedor intempestivo foi quando percebi que durante toda a minha vida eu tive algo do qual sempre me orgulhei e que agora me incomodava: o senso do ridículo."

Normalmente o homem nasce torcedor, não se torna torcedor. Os trajes infantis já o esperam no berçário como uma sina. Há um esforço paterno em não perder a cria para outro clube. Essa traição filial é gravíssima, quase imperdoável para muitos marmanjos. Questão de honra.

Uma decepção medonha quando vem lá um tio ou um parente e desvia o caminho do garoto. Uma tragédia. Pior quando o personagem principal da dupla traição é um padrasto ou um novo namorado da ex–amada. Um perigo. Imperdoável.

O raro mesmo é se fazer torcedor depois dos 20 e poucos anos. Tudo é possível, porém, ao homem do realismo mágico. Você pode até simpatizar, eventualmente, por um timaço da época, um Santos ou um Barcelona da vida –sim, sei que o exemplo não vem em boa fase e hora!– mas torcer mesmo, com aquele ritual maluco de um corintiano, por exemplo, tem que ser quase de nascença, o maloquerismo que vem no sangue.

Porque torcer, como reconhece Gabo, significa, sobretudo, perder o medo e o senso do ridículo. Olhe ao seu lado no estádio e verá. Melhor: mire você mesmo no espelho em dia de jogo decisivo. Torcer pressupõe entrega insana, significa, como diz o autor de "Memórias de minhas putas tristes", tornar-se, do dia para a noite, energúmeno, livre de qualquer verniz que possa ser considerado como o último rastro de civilização.

E se trata de um caminho sem volta. Às vezes o sujeito fica até desgostoso com a agremiação, finge que não está dando a mínima para o campeonato, mas não larga de vez o osso. São raros os casos, apenas para justificar a regra, de vira-casacas.

É aquela história: homem que é homem muda de sexo, mas não muda de time. Bom começo de Brasileirão a todos e até a próxima rodada. Por minha conta.


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