Folha de S. Paulo


A poesia canhota

Amigo torcedor, amigo secador, para cada craque há um escritor ou poeta correspondente, no que lembro a semelhança entre o jogo de Rivaldo e a poesia de João Cabral de Melo Neto. Rivaldo poderia também ser Graciliano Ramos, mas como autor de "Vidas Secas" odiava futebol, preferia a rasteira como esporte nacional, vamos de poema em vez de prosa.

Rivaldo foi João Cabral, nas mesmas 20 palavras ao redor do sol. Na linguagem do jogo, apenas o necessário, como na fala, a lição de dizer com menos vocábulos. Até o adeus, tanto de um como do outro, dispensou a cerimônia, despediram-se da mesma coisa: o medo do excesso.

O poema ou a bola, ambos trataram com a canhota. As duas biografias se encontram como o Capibaribe e o Beberibe se unem para formar o oceano Atlântico. A coincidência se repete no mesmo time que defenderam: o poeta e o atleta vestiram as cores do Santa Cruz –o poeta, América (do Recife) de nascença, cerebral "center half", foi campeão juvenil de 1935 pelo tricolor do Arruda.

Em entrevista que publiquei no "Jornal da Tarde" nos anos 1980, João Cabral confessa, no seu pouco riso, que em campo repetia o estilo do poema e vice-versa. Àquela altura pendia mais para a tourada madrileña do que para o futebol brasileiro.

Entre cafés e aspirinas, na casa de um parente na estrada do Arraial, no Recife, nas cercanias da sede antiga do América alviverde, o poeta d'o cão sem plumas arriscou, nessa de comparar jogo e escrita: "Garrincha está mais para Nelson Rodrigues, inclusive nas tragédias cariocas. Alguém também pode inventar de achá-lo parecido com o João Guimarães Rosa, por causa das invencionices das palavras".

O poeta não arriscou mais palpites diante do pobre foca com fome de vida e manchetes. Provoquei com o caso do goleiro e escritor argelino Albert Camus. Jogar no gol repetiria a miséria humana? Seria uma posição existencialista como a prosa e parte da filosofia de Camus? O poeta não deu muita corda à pergunta. Voltou a falar da relação com o América daquele bairro, time fundado praticamente dentro da sua casa.

Voltemos a girar ao redor desses dois sóis de Pernambuco: João Cabral não deixou um poema para o seu semelhante em campo, Rivaldo Ferreira. A primeira estrofe dedicada a Ademir da Guia, o craque palmeirense, no entanto, paga muito bem essa dívida. Repare se não poderia ter como objeto poético o melhor jogador da Copa de 2002:
"Ademir impõe com seu jogo/o ritmo do chumbo (e o peso),/da lesma, da câmera lenta/do homem dentro do pesadelo".

FOLHA SECA

Na semana passada, chamei a livraria Folha Seca, a melhor em obras de futebol no país, de sebo. Pisamos na bola. É lá que o jornalista José Trajano autografa hoje o seu "Procurando Mônica – o Maior Caso de Amor de Rio das Flores" (editora Paralela), a partir das 12h, na rua do Ouvidor, 37, centro, Rio.

@xicosa


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