Folha de S. Paulo


Parlamentar versus magistrado

A avaliação do desentendimento entre as Casas do Parlamento e os Tribunais Superiores deveria examinar, antes de gerar as manchetes que gerou, o art. 102 da Constituição. Essa norma enuncia que "compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição". Sua interpretação começa pelo verbo "competir" com, no mínimo, cinco significados.

Exigiu mais cuidado, depois que parlamentares e magistrados das cortes de Justiça deram a impressão, até a quarta-feira, de estarem na busca do desafio mais vigoroso. Nenhum lado sairia vencedor e o Brasil perderia.

Na hora em que a coluna é escrita parece que o STF (Supremo Tribunal Federal) ordenará e o Parlamento cumprirá. Digo "parece" porque a oratória dos parlamentares manteve vários dias de agressividade. Os juízes, embora discretos, com o ministro Joaquim Barbosa no comando, pareceram preparados para brandir as treze letras do advérbio "precipuamente".

Define a essência do fim a que se destina o art.102. O substantivo "guarda" e a ação de "guardar" têm dezenas de acepções, mas aqui se referem ao que vigia e guarda. O ato de vigiar se volta para o cumprimento do dever de impedir ofensa ou dano ao titular do direito.

A Carta Magna, no art. 102, credencia o STF para a defesa de todo ofendido, venham as agressões de onde vierem. Nos dicionários, em geral, não há a palavra "magna".

Dão definições dos vocábulos a partir do gênero masculino. Mas, ao tratar da Carta, o feminino do adjetivo magna tem valor qualificativo essencial, predominante. Anuncia que se impõe ou sobrepõe a outras normas em vigência. É a estatura a que chegou o direito fundamental, preservado ou preservável pelo STF.

Na democracia nacional a Constituição foi composta pela Assembleia Nacional Constituinte. Nela, representantes do povo brasileiro estruturaram e definiram um Estado Democrático, sem preconceitos, fundado na harmonia social, cujas as aspirações incluíram o propósito de encontrar solução pacífica para as controvérsias.

No que andou pelo noticiário, nos primeiros dias da semana, pareceu que as baforadas de valentia, no Congresso, estavam "pegando mal". Pior: sem razão histórica que justificasse o que parecia reiteração da oratória inconsequente

Não que o Judiciário seja imune aos tropeços na honra ou modéstia, até em aplicações da lei em favor do próprio bolso. São poucos, em proporção, seus componentes que se imolem em desvios mal disfarçados, mesmo em se sabendo que o número de seus titulares é infinitamente menor que o dos outros poderes.

Durante a semana, as duas casas do Parlamento se apresentaram presididas por cidadãos em face dos quais não transitaram em julgado ações criminais em que são acusados. São, pois, legalmente inocentes, até prova em contrário.

O Judiciário deve prevenir-se contra o aproveitamento de temas exclusivamente políticos, para não ingressar em caminhos que sacrifiquem a confiança do povo. Lembremos que, neste país, o Legislativo faz a lei. O Executivo a executa. O Judiciário condena e absolve, mesmo em desvios de conduta dos componentes dos três poderes. O cuidado no decidir garante a imposição de que suas decisões finais sejam observadas. Descumpri-las seria estimular a ditadura.


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