Folha de S. Paulo


Definidor de nossa época, ato de falar de si mesmo tem seu preço

Marcelo Cipis/Editoria de Arte/Folhapress

Um dos dispositivos fundamentais de definição do horizonte da época a qual pertencemos está vinculado ao advento de um tipo muito específico de fala. Para nós, talvez ela seja a mais natural de todas as falas. No entanto foi necessária uma brutal modificação em nossas formas de vida para que tal fala emergisse e, principalmente, para que ela ganhasse tamanha importância. Trata-se do que entendemos por "falar de si".

De fato, a ideia de que há uma fala que é fala sobre mim mesmo, fala que revela a singularidade de meu lugar e do tempo da minha experiência é uma de nossas mais influentes invenções.

Gregos e romanos, por exemplo, falavam na primeira pessoa, mas não exatamente com o intuito de falar de si, como Rousseau, apenas para ficar em um caso, falará séculos depois de si mesmo em suas "Confissões" a fim de, antes de mais nada, falar para si mesmo, ou seja, dar à errância da sua vida a forma de algo que possa ser apropriado por si mesmo. Gregos e romanos falavam na primeira pessoa para fornecer exemplos de um caso geral a ser assumido por outros.

Nosso vínculo ao ato de "falar de si" tornou-se tão forte que chegamos a acreditar que ele poderia nos curar de nossos males.

Algo do advento da psicanálise, por exemplo, parece estar radicalmente vinculado a essa operação. Se ela foi uma prática tão influente entre nós a ponto de transformar nossa cultura em uma "cultura psicanalítica" foi, entre outras coisas, por ter compreendido como as sociedades ocidentais estavam vinculadas à crença de que muitas vezes sofremos por não sabermos como falar de nós mesmos. Como se as experiências das quais somos sujeitos exigissem sínteses que apenas uma fala na qual construímos um romance pessoal seria capaz de realizar.

Aristóteles costumava dizer que o que separa a ficção da vida ordinária é a existência de um começo, de um meio e de um fim. Como se a ficção desse ordem à vida, fornecendo-lhe uma racionalidade, na medida em que define formas de ligação, de sucessão, de coexistência, de hierarquia entre acontecimentos. A falta deste romance, dessa ficção parece, ao menos para nós, impedir o ato de reflexão, dessa reflexão que aproximaria os momentos esquecidos em uma rememoração extensa, que tece uma rede de causalidades convergentes que revelariam o que realmente queremos e procuramos realizar, muitas vezes sem o saber.

Só que a psicanálise traz também um outra ideia, distinta dessa noção hegemônica de que falar de si é, como os gregos diziam, um "pharmakos". Pois não seriam as inúmeras formas do "falar de si" uma conformação a um padrão de fala, com suas pressuposições de maturidade e ordem, em vez de uma expressão? Poderíamos começar por nos perguntar: em que condições somos reconhecidos como capazes de falar de nós mesmos, de relatar nossos atos em uma linguagem "correta"?

Não seria uma fonte de sofrimento a imposição de falar de nós mesmos em situações nas quais certamente seria necessário algo outro, por exemplo, falar não de si, mas dos objetos que nos causam e afetam, como se fosse possível assumir a fala dos objetos?

Pois somente um idealismo que confunde percepção com delírio projetivo nos faria acreditar que nossa fala é simplesmente nossa, e não o resultado da maneira com que os objetos ressoam, resultado da maneira com que eles não se submetem a nós, quebrando a regularidade de nossas narrativas, marcando espaços sem unidade.

Ou seria sempre delírio psicótico falar não de nós, mas falar como outros que não conhecemos e não fomos? Pois há momentos em que falar de outros, falar com a voz de outros, é a única fala verdadeira, por indicar o que está em movimento de se tornar algo distinto.

Há a voz das coisas e dos objetos, há a voz de outros em nós. Essas vozes são uma universalidade no interior de todo corpo singular. No entanto há aqueles que preferem continuar a falar de si mesmos ou, principalmente, falar como si mesmos. É uma escolha possível, é verdade. Ela tem seu preço.


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