Folha de S. Paulo


Terminar com a representação

Marcelo Cipis/Marcelo Cipis/Editoria de Arte/Folhapress
Cipis de 07 de Abril de 2017

Uma das ideias fundamentais da política moderna é a noção de representação. Aprendemos a compreender o espaço político como um espaço de conflitos organizado a partir de uma dinâmica específica de constituição de atores.

Essa dinâmica estaria necessariamente ligada aos processos de representação. Assim, só poderiam participar do campo de conflitos políticos aqueles que se submeteram à representação, ou seja, aqueles que representam algo, que falam em nome de um lugar que representam, seja esse lugar um grupo, um setor de interesses, um partido, uma associação. Em suma, o pressuposto central aqui é: uma multiplicidade não se apresenta de forma imediata; ela só pode existir como algo representado.

Várias consequências se seguem daí. Por exemplo, dentro dessa visão, uma sociedade plural seria aquela que permitisse a emergência de vários representantes e representações ao mesmo tempo. Quanto mais representações diversas, mais plural a sociedade. No entanto, por mais diversas que tais representações sejam, elas devem partilhar algumas coisas em comum. Pois a representação tem suas regras, tem seus modos de contagem, tem sua gramática, tem seus acordos. Aceitar sua gramática significa aceitar como as lutas se darão, em qual espaço, como os conflitos serão resolvidos.

Nesse sentido, existir politicamente é, ao menos para tal forma de pensar, aceitar se submeter a essas regras, modos de contagem, gramáticas e acordos. A essa submissão chamamos normalmente "democracia".

Mas o que aconteceria se abandonássemos a noção de representação? Não são poucos os que clamam o caos completo, a tirania, a desordem e todas as figuras imagináveis da catástrofe. Um pouco como esses cartógrafos medievais que desenhavam o mundo até certo ponto e depois dele colocavam monstros e abismos. Maneira de levar os navegadores a não querer ir mais longe.

No entanto gostaria de insistir que a representação é hoje um arcaísmo político que visa apenas nos afastar de uma democracia real. Na verdade, quem a defende, seja à direita ou à esquerda, encontra nela um bom álibi para esconder seus desejos de controle, para filtrar a sociedade construindo uma imagem da emergência popular mais fácil de controlar. Pois, definindo as condições de representação, sou capaz de controlar a fronteira entre a existência e a inexistência política. Mas a verdadeira tarefa política hoje não é consolidar mecanismos de controle. É criar uma sociedade descontrolada.

Pensemos um pouco a respeito de dois pontos.

Primeiro, temos atualmente todas as condições técnicas para criar uma sociedade de deliberação contínua baseada em uma democracia digital. Em sociedades que têm nível quase total de conexão virtual, não há mais dificuldades técnicas para imaginar processos decididos por meio de uma espécie de ágora virtual.

Quando falamos isso, sempre há os que dizem: mas como passar decisões técnicas sobre Orçamento, gastos, etc. para um povo despreparado e desinteressado? Como se nossos políticos fossem a imagem mais acabada do preparo e do conhecimento. No entanto, há de se lembrar que o desinteresse popular é diretamente proporcional à consciência da irrelevância de sua opinião. Ou seja, desinteresso-me porque sei que, no fundo, minha opinião não conta, que nada vai mudar. Quando percebo-me de fato investido de poder de decisão e influência, um processo de transformação subjetiva começa a ocorrer.

Por outro lado, lembremos como durante um bom tempo houve um embate entre dois modelos de democracia: um baseado no sufrágio universal e outro baseado no acaso, quer dizer, baseado na escolha de cidadãs e cidadãos ao acaso para desempenhar funções públicas.

Esse segundo modelo era muito mais imanente do que o primeiro. O que significaria, por exemplo, se os membros do Senado fossem escolhidos ao acaso dentre a generalidade de cidadãs e cidadãos brasileiros, evitando com isto a constituição de uma casta profissional de políticos que acabarão por pensar apenas em sua própria sobrevivência? Afinal, queremos lutar para "melhorar" a representação ou para fazer emergir outra forma de democracia?


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