Folha de S. Paulo


Um mestre na periferia

Marcelo Cipis/Marcelo Cipis/Editoria de Arte/Folhapress
Marcelo Cipis de 31 de Março de 2017

A filosofia no Brasil conheceu, dentre vários trajetos que merecem ser lembrados, uma experiência intelectual singular e terminada de forma abrupta em pleno desenvolvimento criativo. Há dez anos, falecia Bento Prado Júnior, certamente um dos filósofos mais representativos e originais que o país conheceu.

Gilles Deleuze costumava dizer que toda verdadeira experiência filosófica é a elaboração sistemática de apenas um problema. Este problema não estará lá para ser respondido, mas para produzir novas questões, para levar seu enunciador a procurar reconstituir formas de pensar, a dissolver divisões, a impulsionar a inquietude.

Ou seja, a verdadeira experiência filosófica é indissociável da capacidade de saber de fato ouvir um problema, de deixá-lo desdobrar lentamente sem ter medo de que tal tempo de desdobramento acabe por nos mudar profundamente. Pois um problema por muito tempo aberto é um território de placas tectônicas em movimento contínuo.

Poucos foram os filósofos entre nós fieis a tal ideia como Bento Prado Júnior. Seu primeiro trabalho fora uma tese de doutorado dedicada a Henri Bergson –"Presença e Campo Transcendental: Consciência e Negatividade na Filosofia de Henri Bergson" (Edusp, 1988, mas escrita em 1964).

Nela, já estava presente não apenas o problema que lhe animaria por toda sua vida intelectual, mas também sua estratégia singular e completamente inesperada. O problema foi por ele próprio enunciado: "Que seria ser si mesmo? Se a pergunta tem sentido, como pode articular-se com o ser outro: outros "si-mesmos", o Mundo, Deus, se tais entidades existem ou in-sistem em ex-sistir?".

Que seria ser si mesmo? O que significa falar na primeira pessoa? Mas, principalmente, que alteridade tal afirmação de si implica? Sim, porque há uma alteridade lá onde acreditava encontrar apenas o que me é "próprio".

Esta é talvez a alteridade mais difícil de apreender, mesmo que seja a mais necessária a desvelar. No momento em que a filosofia colocava em questão as certezas do sujeito, questionava os pressupostos das filosofias da consciência, Bento Prado procurava ouvir as explosões que a noção de "si mesmo" porta.

Enquanto alguns anunciavam a morte do sujeito, Bento Prado sabia encontrar diferença lá onde outros só viam identidade. O que não poderia ser diferente para alguém que dirá: "a intenção última é a de introduzir um mínimo de negatividade no debate acadêmico, revelando o que há de frágil na segurança moral-ideológica que está em sua base mais funda".

Daí seu interesse em produzir uma filosofia capaz de construir quiasmas com discursos do descentramento e do atravessamento de si, como a psicanálise e a literatura moderna. Bento não foi apenas o responsável por desenvolver entre nós uma certa liberdade da filosofia em relação a seus objetos, problemas e tradição (afinal, será difícil encontrar alguém capaz de colocar em debate Wittgenstein e Deleuze, Searle e Merleau-Ponty). Ele foi quem serviu-se desta liberdade para fazer perguntas como: O que é uma filosofia que ouve a linguagem bruta de Guimarães Rosa? O que é uma filosofia que se pergunta pela opacidade do inconsciente?

Sua obra posterior, composta principalmente de dois livros lançados em vida, "Alguns Ensaios" (Paz e Terra, 2000) e "Erro, Ilusão, Loucura" (Editora 34, 2004) e do póstumo "A Retórica de Rousseau e Outros Ensaios" (Organizado por Franklin de Mattos para Cosac e Naify, 2008) indicava a consolidação de um caminho que visava redundar em três obras que Bento Prado prepara no momento de sua morte, "Ipseitas", "Actio" e "Contemplatio".

A primeira seria sobre a teoria do sujeito, a segundo sobre suas manifestações ético-políticas e a terceira sobre poesia e metafísica. Destas, apenas a primeira começou a ser esboçada. Seus manuscritos, já em estado avançado, serão enfim publicados dentro de três meses pela Editora Autêntica.

Que esta seja uma ocasião para nós recuperarmos um dos momentos mais expressivos da inteligência nacional e de sua força especulativa. Que não sejamos um país que desconsidera sistematicamente a originalidade de suas próprias ideias.


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