Folha de S. Paulo


Philip Glass queria música que criasse a experiência do tempo suspenso

NO FIM DE 2016, a Sony Records lançou "Philip Glass - The Complete Sony Recordings": uma caixa com 24 CDs na qual encontramos entrevistas e vários trabalhos gravados pelo compositor norte-americano a partir de 1982, além de "Einstein on the Beach", ópera montada juntamente com Bob Wilson e apresentada pela primeira vez em 1976.

O lançamento da série é um momento privilegiado para colocarmos questões a respeito deste que foi um dos movimentos mais influentes da música contemporânea, do qual certamente Philip Glass é o nome popularmente mais conhecido, a saber, o minimalismo.

A música contemporânea norte-americana, a partir principalmente da segunda metade do século 20, terá um relação singular com a pintura e as artes plásticas. Músicos como Morton Feldman, por exemplo, irão pensar visualmente, não apenas fazendo músicas inspiradas por artistas plásticos como Jackson Pollock, Philip Guston e De Kooning, mas ocupando o espaço musical através da construção de blocos e gestos, aproximando timbres e cores.

De fato, a música irá procurar certo apoio em relação a outras artes mais "estabelecidas" no cenário cultural norte-americano a partir dos anos 1940. Nesse sentido, a pseudomorfose entre música e pintura foi providencial em um momento em que Nova York se afirmava como centro mundial das artes visuais por meio do expressionismo abstrato. Ela forneceu aos músicos um campo renovado de debates graças à aproximação com uma esfera de produção cultural mais bem estabelecida. Não por outra razão, alguns desdobramentos maiores da música norte-americana continuaram a encontrar seu impulso na aproximação conceitual com o universo das artes visuais, como no caso do minimalismo a partir dos anos 1960.

Mas, para além de uma questão de sociologia das artes, havia algo a mais nessa relação entre música e pintura. Lembremos, por exemplo, do que dizia Philip Glass: "Minha música é um motor do espaço". Ou seja, a música ocidental normalmente se viu como uma arte do tempo, daí a definição canônica do crítico musical Eduard Hanslick: "Música são formas sonoras em movimento".

De certa forma, a música é uma reflexão sobre entrar em movimento, sobre criar dinâmicas, criar ressonâncias que fazem do tempo um contínuo no qual seus múltiplos instantes se interpenetram em reinscrição incessante. Mas Glass queria deliberadamente uma música que pensasse espacialmente, que construísse a experiência do "ex-tase", do tempo suspenso, que se desenvolvesse por acumulação, por sobreposição, por corte, como se estivéssemos diante de um objeto no espaço.

Essa suspensão deliberada do tempo musical era uma decisão de não mais trabalhar com a noção de tempo-duração, de narratividade com suas dinâmicas de tensão-distensão e, principalmente, recusa do trabalho da memória, tão fundamental para a audição musical.

Subia à cena o mecanismo bruto da repetição. Nenhum outro músico minimalista importante, como Steve Reich ou John Adams, continuou de forma tão deliberada a restringir seu material através de mecanismos de repetição como Philip Glass.

Por essa razão, sua música poderia parecer simples e mesmo regressiva com essas sequências contínuas de arpejos, de acordes perfeitos, ostinatos, com seu tonalismo aparente. Mas ela realizava um princípio construtivo bem descrito pelo artista plástico Sol LeWitt quando justificava seu cubos brancos em galerias de arte: "Resolvi tirar a pele das coisas e mostra a estrutura".

Ou seja, tudo se passava como se fosse o caso de retirar a pele das coisas, subtrair a gramática musical até chegarmos a seus princípios elementares, a fim de fazer do elementar não mais o momento potencial de um desenvolvimento, mas o ato de sua própria autossuficiência.

Através desse esfolamento da gramática musical, dessa desconstituição do tempo, a música acreditou ter a força de vencer o empobrecimento da nossa experiência do tempo e da linguagem mimetizando aquilo contra o qual nós nos batemos. Ela acreditou poder assim se aproximar de um outro tempo, de um tempo mítico em uma era sem mitos, o que talvez explique a fascinação de Glass pela música indiana, de Reich pela mística judaica.

Independentemente dos resultados e das limitações dessa estratégia, ela mostrou como a arte consegue produzir vida até mesmo mimetizando e insuflando vida no que está morto.


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