Durante muito tempo, as obras de Freud tiveram péssima tradução no Brasil. Traduções imprecisas feitas diretamente da versão inglesa obrigaram pesquisadores e psicanalistas não versados em alemão a trabalhar com os textos em língua espanhola ou francesa. Mas, com a liberação dos diretos autorais há alguns anos, as livrarias começaram enfim a ter edições à altura do desafio de verter uma das obras mais influentes do século 20 para nossa língua.
Dentro desta nova leva de traduções, a editora Autêntica publica agora uma compilação de textos clínicos de Freud sob o título de "Neurose, Psicose, Perversão". Parte da série "Obras Incompletas de Sigmund Freud", coordenada por Gilson Iannini, o livro traz, em tradução competente, alguns dos principais textos de Freud a respeito de sua reconfiguração de categorias clínicas centrais do sofrimento psíquico. "Luto e Melancolia", "Fetichismo", "A Negação", "Neurose e Psicose" são alguns dos textos que ganham nova tradução, acompanhados de manuscritos e cartas relevantes para entendermos melhor a trajetória da experiência intelectual freudiana.
No entanto, a tradução deste conjunto de textos pode também representar um bom momento para nos perguntarmos sobre o sentido de ler tais artigos em 2016. O que temos diante de nós? Estudos historicamente fundamentais porém ultrapassados no que se refere à sua reflexão clínica? Ou estudos que, apesar da distância de um século, ainda nos dizem respeito? Lemos Freud como leríamos Lamarck a respeito da evolução ou Newton e sua física pré-teoria da relatividade?
Marcelo Cipis/Editoria de Arte/Folhapress | ||
Questões desta natureza são ainda mais relevantes se lembrarmos que, de certa forma, as categorias descritas por Freud não existem mais, ao menos para as linhas hegemônicas da psiquiatria reinante. A princípio, vivemos em uma sociedade na qual, por exemplo, não existem mais "neuróticos" nem "paranoicos". Estas duas categorias desapareceram dos manuais de psiquiatria e da razão diagnóstica médica. Freud trabalhava com uma polaridade entre duas neuroses fundamentais: a neurose obsessiva e a histeria. Sintomas clínicos anteriormente associados a tais categorias encontram-se atualmente dispersos no transtorno obsessivo-compulsivo, nos transtornos somatoformes e nos transtornos de personalidade histriônica. Mas o que significam tais modificações de padrões de descrição do regimes de sofrimento psíquico?
Essa é uma questão que mereceria ser objeto de uma reflexão mais aberta e demorada. A maneira como uma sociedade modifica a maneira com que as patologias mentais são descritas influencia de forma decisiva como sujeitos lidam com suas experiências de sofrimento e suas expectativas de vida bem-sucedida. Por isso, deveríamos começar por nos perguntar, por exemplo, sobre o que significa uma sociedade que, de certa forma, eliminou seus neuróticos.
Nas mãos de Freud, uma categoria como a neurose adquiriu três características fundamentais, a saber, ela era analisada a partir de sua etiologia, ela dizia respeito a modificações globais de conduta e ela estava profundamente vinculada ao campo do sexual. O primeiro ponto significava: ela tinha uma estrutura causal que só seria compreensível à condição de levarmos em conta a história da doença. Uma história ligada ao processo de socialização do desejo do paciente, seus conflitos e compromissos, suas expectativas e fracassos. Sua cura estava assim vinculada à capacidade dos sujeitos de elaborarem sua própria história, o que há muito deixou de ser uma preocupação clínica.
Já o segundo ponto se referia à ideia de que o adoecimento implica modificação, em maior ou menor grau, de todas as funções psíquicas. Daí a ideia de que não se trata simplesmente de tratar sintomas, mas de modificar estruturas. Uma forma clássica de não resolver problemas é dividindo-os. É desta forma que um setor de problemas é "resolvido" enquanto clínicos precisam lidar com reincidências e comorbidades constantes. Por fim, o último ponto nos lembrava que ninguém constitui sua sexualidade sem que isto deixe marcas e sintomas. Uma sexualidade é uma construção precária e sempre a lidar com contradições constantes.
Essa visão histórica, holista e agonística era o que se derivava da clínica freudiana. A boa pergunta é: por que ela foi recusada pelo saber médico-psiquiatrico atual? O que temos atualmente no seu lugar?