Folha de S. Paulo


Dois jovens e seus destinos

Eles cresceram nos Estados Unidos dos anos 1960 e 1970, em meio a manifestações e radicalização da política norte-americana. Todos os dois expressavam o desejo da chamada "juventude de 68" de construir uma sociedade marcada pela solidariedade com os mais vulneráveis, assim como por uma liberdade real que não fosse destruída pela desigualdade e pela precariedade econômica, ou seja, por uma liberdade que não fosse submetida aos ditames da concentração de riquezas. Por isso, todos os dois entraram na política institucional. Mas as semelhanças terminam aqui. De certa forma, a história dos dois e de seus desencontros é a história dos caminhos e descaminhos de uma geração que, em algum momento, acreditou em sua própria força de transformação.

Um dos nossos personagens chama-se Hillary Clinton. Todos nós a conhecemos: a eterna candidata a presidente dos EUA desde o aparecimento de seu marido em cena. Sua figura da mulher emancipada, capaz e inteligente é conhecida de todos. Como também é conhecido seu alinhamento incondicional à lógica militarista da política norte-americana, ao "patriot act" editado por seu marido, que abriu as portas para os EUA tornarem-se um país em estado de exceção permanente, às exigências de um política econômica submetida aos ditames do sistema financeiro e responsável por aumentar brutalmente a desigualdade e fazer dos EUA um país ao mesmo tempo de opulência e com transportes públicos miseráveis, universidades públicas pagas e sistema público de saúde mínimo.

Hillary Clinton é, como Obama, a melhor representação da lógica "sangue novo nas velhas engrenagens". Mais que isso, ela representa muito bem o que aconteceu com uma parte da chamada "juventude de 68", sua forma peculiar de apoiar as políticas mais reacionárias, mas usando discursos mais edificantes e libertários, sempre com a desculpa da "lógica do possível". Sendo que, se há algo que resume a ideia de uma política verdadeira, não é a adaptação ao possível, mas a capacidade de transformar os impossíveis em possíveis.

Tudo parecia jogado, mas eis que aparece nosso segundo personagem, Bernie Sanders, alguém que, segundo os manuais, simplesmente não deveria mais existir. Pois como é possível que em 2016 exista, no coração da pátria do neoliberalismo, alguém que fala em luta contra o sistema financeiro, em fortalecimento do Estado como agente de justiça social, em mais impostos para os ricos e mais serviços para os pobres e em fim do militarismo? Ou seja, alguém que é como um fantasma que ronda a política norte-americana, o fantasma de uma conta a ser acertada com a parcela da "geração de 68" que não capitulou. Segundo os manuais, alguém que não tem medo de se chamar "socialista" só poderia ser politicamente irrelevante.

Bem, o resto da história estamos vendo agora. Apesar de todas as dificuldades de uma campanha pobre e soberanamente ignorada pelo aparato midiático, Sanders tem resultados absolutamente surpreendentes. Ou seja, uma parcela incrivelmente significativa da população norte-americana vota em alguém que se diz socialista e que, no Brasil, estaria claramente à esquerda de todos os atores políticos. A pergunta interessante é: por que essa parcela da população foi simplesmente escondida, por que suas opiniões e perspectivas não aparecem na imprensa, a não ser sob a forma de caricatura grotesca? Será que realmente sabemos que tipo de país são os EUA?

Sanders ganha de forma absolutamente significativa nos estratos mais jovens, o que diz muito. Na verdade, ele representa um reconhecimento entre os jovens que anos atrás ocuparam as ruas dos EUA nos movimentos "Occupy" e os já não tão jovens que sempre foram fiéis ao que as lutas de 68 representaram. Essa sobreposição entre dois tempos é a forma de emergência que explode a linearidade do tempo para insistir como promessa que se repete de forma insistente. Só o que se repete é real, dizia Lacan.

Hoje, Sanders representa o que há de real na política norte-americana, aquilo que é não contado e esquecido pela situação atual, mas que explode periodicamente mostrando o desejo inquebrantável por outra situação. Ele lembra aos que capitularam que eles, de fato e sem maiores rodeios, capitularam, tal como os jovens faziam em 68.


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