Folha de S. Paulo


Pierre Boulez morreu

"A beleza convulsiva será erótico-velada, explodente-fixa, mágico-circunstancial, ou não será beleza". Esta frase se encontra ao final de "O Amor Louco", de André Breton. Ela sintetiza, na aurora do século 20, como o século compreenderá a única maneira de ainda falar em beleza. Não mais a harmonia e equilíbrio das formas que produzem o prazer da adequação, mas a convulsão produzida pela tensão contraditória do que é, em um mesmo movimento, erótico e velado, organizado e em contínua explosão. Esta beleza é a expressão de formas em compasso de inquietude e de processualidade que atravessarão o século 20 como a consciência desperta da superação necessária do tempo em direção ao ainda não visto.

"...Explosante-fixe..." é também o nome de uma das peças mais impressionantes de Pierre Boulez, cuja última versão data do início da década de 1990. Sua versão para orquestra de câmara, duas flautas e flauta MIDI, consegue produzir uma forma cujo desenvolvimento ordenado é impulsionado pela organicidade dos sopros em sua mimese com a respiração humana em convulsão, organicidade próprias a esses espaços lisos contínuos que "ocupamos sem contar", ou seja, espaços que não podem ser divididos por operação de numeração. Como nesta obra que praticamente inaugura a modernidade musical, a saber, "Prelúdio para a Tarde de um Fauno", de Debussy, a flauta fornece a continuidade temática a partir da qual a peça irá se constituir em uma forma liberada de todo esquema prévio. Só que, de Debussy a Boulez, o tema se liberou até mesmo da melodia para ser, agora, o impulso bruto de forçação em direção à pureza da intensidade. Neste sentido, se alguma obra musical foi capaz de expor uma beleza convulsiva, esta obra foi, por ironia do destino, composição de um compositor que seus críticos sempre gostaram de descrever como "cerebral" e demasiado intelectualizado.

Boulez morreu. Desde a última quarta-feira ele está morto. Com ele, vai-se o último representante de uma vanguarda musical densamente povoada pela construção de experiências capazes de levar exigências de liberdade crítica da linguagem a pontos até então nunca alcançados. John Cage, Karlheinz Stockhausen, Gyorg Ligeti, Luigi Nono, Luciano Berio: todos esses são nomes que marcam uma época que muitos gostariam de dizer já completamente encerrada.

Pois a recusa de Boulez a todo "hibridismo", sua exigência de reconstrução profunda dos conceitos que orientam a produção musical, sua exigência de reflexão a respeito da construção musical, mesmo quando ela aceitava abrir espaço ao acaso, sua procura não por uma música "desafetada", mas por uma música capaz de trazer afetos dos quais não conhecemos as imagens foram vistas, por muitos, como figura de um outro tempo. Um tempo no qual faria ainda sentido afirmar a autonomia da obra de arte em sua elaboração formal.

Por isto, no momento de sua morte, não foi por acaso que a imprensa mundial procurou "humanizar" Boulez. Lembra-se de sua impressionante carreira de regente internacional, suas gravações de Mahler, suas montagens de Wagner, sua verve de construtor de instituições (Ircam, Ensemble Intercontemporain). Como se fosse o caso de dar a sua figura uma sombra mais familiar. Algo como: compositor reconhecido pelo meio musical como brilhante, maestro de grande técnica e "agitador cultural".

No entanto, seríamos mais honestos à sua genialidade se lembrássemos como sua música era desumana, música de um tempo que alguns gostariam de ver terminado porque inumano. Mas "inumano" no sentido do que adianta aquilo que não porta mais a imagem do homem tal como até agora o conhecemos. Por isto, música que nos desumaniza ao apelar a uma comunidade por vir a uma outra velocidade de afetos e percepções. Daí seu caráter de música difícil, por exigir nos desacostumarmos do que nos aprisiona em nossas formas de sensibilidade. Boulez sempre acreditou que a função do músico não era fornecer o consolo terapêutico do que nos acomoda ao que somos, mas produzir a forma do que impulsiona em direção a uma sensibilidade de desregramento. Talvez por isto lembrar que sua música nos desumaniza é a melhor forma de fazer homenagem a alguém que nunca temeu o verdadeiro sentido da palavra "ruptura".


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