Folha de S. Paulo


Uma humanidade, vários corpos

"Metafísicas canibais", o livro recém-publicado de Eduardo Viveiros de Castro, poderia ser compreendido como uma das mais ousadas reflexões das últimas décadas sobre o estatuto epistemológico da antropologia. Tal compreensão seria correta, mas simplesmente parcial. Seu livro é mais do que isto.

Primeiro, nota-se como dele deriva uma forte reflexão de cunho propriamente filosófico sobre os limites do relativismo ao convidar o leitor a descobrir o pensamento ameríndio como portador de virtualidades insuspeitas do pensamento em geral (e há de se sublinhar o que significa falar hoje de pensamento "em geral"). Tal convite é sua maior arma crítica. Ao fim de sua leitura, é difícil ao leitor brasileiro não se perguntar quanta incompreensão e violência foram necessárias para desconhecermos por tanto tempo a complexidade destas experiências do pensamento ameríndio que estão a nossa volta e que nos implicam. Não será a menor das ironias deste livro prenhe de inversões surpreendentes descobrir, por exemplo, os devires e intensidades que habitam as páginas mais recentes da filosofia francesa de Deleuze e Guattari pulsando no pensamento destes índios que procuramos soterrar. Por estas e outras razões, sua leitura entre nós reveste-se de uma importância suplementar.

"Metafísicas Canibais" parte de uma questão de base: "O que deve a antropologia aos povos que estuda?". Esta é sua maneira de defender a tese de que a antropologia pode alcançar o nível no qual seus conceitos se enraízam no esforço imaginativo das próprias sociedades que ela pretende explicar. Forma astuta de defender que a verdadeira missão da antropologia é ser, na bela definição do autor, "uma teoria-prática da descolonização permanente do pensamento". Pois a perspectiva relativista que reduz o discurso sobre o Outro à projeção constante de nós mesmos pode parecer inicialmente ser o reconhecimento dos limites de nossa forma de pensar, mas, ao final, ela apenas reitera o narcisismo de quem só enxerga a si mesmo em tudo o que vê.

Nesse sentido, quando Viveiros de Castro propõe tomar as ideias indígenas como situadas no mesmo plano que as ideias antropológicas, insistindo que elas também são produtoras de conceitos, ele não o faz para afirmar a irredutibilidade entre "nós" e o "Outro". Antes, tomar o canibalismo, por exemplo, como uma imagem do pensamento, tomar a predação como operação cognitiva é uma forma de remeter a experiência do pensamento a um campo de comparações no qual os termos comparados se traduzem por equivocidades que não são erros ou ilusões, mas forma de uma relação positiva entre diferenças.

Como nestas figuras de gestalt, na qual a forma vira fundo e vice-versa, a própria estrutura do pensamento ameríndio fornecerá a figura da relação possível entre a antropologia e seus Outros. Pois o perspectivismo próprio aos ameríndios nunca será um relativismo. Tal perspectivismo está claramente expresso na conhecida parábola relatada por Lévi-Strauss em "Raça e História". Segundo ele, nas Antilhas, alguns anos após o descobrimento da América, enquanto os espanhóis criavam comissões para saber se os indígenas possuíam alma ou não, estes submergiam prisioneiros brancos para saber se seus corpos eram iguais aos deles.

Ou seja, nunca foi questão, para os indígenas, duvidar do fato dos europeus terem uma alma. Nesta cosmopolítica, todo existente, seja homem ou animal, participa da mesma humanidade. Os animais têm almas como nós, mesmo um europeu pode ter alma. O que difere são seus corpos, que estabelecem perspectivas singulares baseadas em sistemas específicos de afecções. Assim, uma multiplicidade de corpos pressuporá uma multiplicidade de perspectivas sob a univocidade de uma mesma humanidade. Contrariamente ao nosso multiculturalismo, aparece pois um peculiar multinaturalismo no qual vários conceitos de natureza cortam o plano de um mesmo campo da cultura.

Esta univocidade da cultura, tão estranha a nossa sensibilidade atual que só saberia ver nisto um narcisismo animista, permite, ao contrário, uma operação generalizada de descentramento. Se a mesma humanidade está presente nos homens e animais, então nada é humano inequivocamente. Ser humano é, na verdade, estar constantemente fora de si, ser um antinarciso, já que, como dizia Lévi-Strauss: "Nada de humano deve ser estranho ao homem". É isto o que aprenderíamos se soubéssemos parar de destruir nossos próprios índios.


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