Folha de S. Paulo


Autodestruição do Estado

Liran Razinski é um professor israelense de literatura que mora em Jerusalém e milita pelo reconhecimento do Estado Palestino. Seu filho estuda em uma das raras escolas em Jerusalém para árabes e judeus. Há algumas semanas, a escola foi queimada e pichada com os dizeres: "Não é possível coexistir com o câncer". Mesmo queimada, ela teima em continuar funcionando.

As ações de Liran não se resumem, no entanto, a matricular seu filho em uma escola na qual ele poderia aprender a coexistência ou participar de manifestações pela paz. Logo depois que uma criança árabe foi sequestrada e queimada viva em represália à morte de três adolescentes colonos judeus, ele e mais outros ativistas israelenses organizaram brigadas que rondavam bairros árabes de Jerusalém à noite a fim de impedir que ações parecidas ocorressem novamente. Enquanto vários diziam temer pela escalada de violência enquanto viam tudo pelo sofá da televisão, Liran agiu, mesmo sabendo que sua ação era vista com desprezo pela grande maioria de seus concidadãos.

Mas, agora, ele sabe que talvez tenha chegado a hora de esperar o pior. Há algumas semanas, a coalização de Netanyahu foi dissolvida. Os membros mais "moderados" (se é que o termo ainda faz algum sentido) abandonaram o governo no momento em que ele investia toda sua força para aprovar a transformação do Estado israelense em um "Estado judeu". Certamente isto será feito nos próximos meses.

Ou seja, Israel será um Estado no qual, entre outras coisas, 20% da população (os não-judeus) estará definitivamente relegada à condição de cidadão de segunda classe. Algo tão brutal quanto definir o Brasil como um país no qual a cidadania plena é reservada aqueles que têm laços de sangue e cultura capazes de constituir uma identidade social excludente. O mínimo que se pode dizer é que um Estado dessa natureza está a meio caminho para institucionalizar uma forma profundamente perversa de racismo.

A invenção do Estado moderno teve, como uma de suas principais virtudes, a dissociação entre nação, Estado e povo. Ele construiu uma noção de cidadania assentada na indiferença em relação às diferenças culturais, religiosas, étnicas e a toda e qualquer determinação identitária. Por mais que tal construção tenha sido constantemente destruída pelas forças mais obscuras da vida social, a ideia de uma igualdade política baseada na abstração radical das diferenças é a única coisa que impede nossos Estados de se transformarem em clubes comunitaristas militarizados.

Se Israel der esse passo, seu Estado será um trágico exemplo de clube dessa natureza e crianças como o filho de Liran terão que achar outra escola.


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