Folha de S. Paulo


Deixe meu jatinho em paz

Ontem, descobri que estou em uma luta contra os pobres. Como eu não havia percebido isso antes?

Preciso me lembrar de agradecer ao jornalista Leandro Narloch e seu luminoso artigo, cujo singelo título é "Safatle contra os pobres", publicado ontem na seção Tendências/Debates.

É obvio, alguém como eu, que afirma ser absurdo um motoboy pagar IPVA de sua moto enquanto milionários não pagam nada parecido com seus iates e helicópteros, só pode lutar contra o verdadeiro interesse dos pobres.

Eu deveria ter dito: "Pobres deste grande Brasil, seu verdadeiro interesse é continuar trabalhando para iates não pagarem IPVA". Mas corria o risco de acharem que se tratava de uma peça de Bertolt Brecht e tudo iria por água abaixo.

Pois bem, juro que acreditava que nem os liberais mais ideologicamente envenenados defenderiam coisas parecidas, mas eu devia ter lembrado que o Brasil surpreende qualquer um. Ele certamente surpreendeu o compositor francês Jacques Offenbach, que compôs, no século 19, uma opereta chamada "La Vie Parisienne". Nela, Offenbach criou o personagem de um rico brasileiro que chega em Paris a fim de gastar uma fortuna em consumo conspícuo e despesas suntuárias. A ideia lhe veio à mente simplesmente observando os brasileiros ricos em Paris, que deixaram seus escravos trabalhando no café e o povo na miséria enquanto alguém estava nos jornais a defender seus interesses de classe.

Mas para não ficar muito evidente seu papel secular de escriba do gozo alheio, o sr. Narloch quis falar das virtudes do crescimento econômico.

Da minha parte, nunca disse ser contra o crescimento (embora compartilhe com os ecologistas a crítica a um produtivismo tosco que não se pergunta primeiro pela qualidade de vida e defesa ambiental). Afirmei que deveríamos colocar a questão: crescimento para quem? De nada adianta crescimento com concentração de renda, uma especialidade brasileira condizente com um mundo que retornou a padrões de desigualdade e acumulação dignos do século 19.

Mas faz parte do velho mantra liberal querer travestir a defesa da riqueza de alguns com as roupas do pretenso interesse de muitos.

Enquanto alguns saem em luta contra impostos sobre herança e aderem a campanha do "deixe meu jatinho em paz", as famílias brasileiras veem seus salários erodidos por gastos desproporcionais com educação, saúde e transporte privados.

Quem realmente se preocupa com tal situação pensa em como dar ao Estado mais capacidade de investimento nesses setores, inaugurando um novo ciclo das políticas de combate à desigualdade.


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