Folha de S. Paulo


A razão religiosa

SÃO PAULO - A inclinação religiosa de Marina Silva despertou um debate num segmento diminuto da opinião pública. Missionária da Igreja do Novo Dia, associada à federação pentecostal Assembleia de Deus, a candidata estaria, para alguns, próxima demais do dogmatismo da fé para tomar decisões equilibradas como presidente da República.

O oportunismo petista está por trás de boa parte dessas críticas. Se Marina tivesse se mantido aliada de Lula e do PT e fosse hoje a candidata da situação, esse aspecto de sua crença passaria batido, e os companheiros cerrariam fileiras para defendê-la do "higienismo religioso e demofóbico da elite branca".

É impossível saber objetivamente até que ponto a cabeça crente de Marina interferiria no seu estilo de comandar. A passagem pelo Ministério do Meio Ambiente, sob Lula, revelou defeitos mais palpáveis, atinentes à sua dificuldade de gerir equipes, de tomar decisões e de se relacionar com outros segmentos da sociedade.

A mais perturbadora confusão nesse debate sobre fé e governo está associada à imputação, muitas vezes implícita, de que todo elemento religioso está em conflito com a razão e com o caráter laico do Estado.

A progressiva racionalização do cotidiano se dá, ao longo dos séculos, no seio das grandes correntes religiosas, e não a despeito delas. Nesse processo, a crença num ser transcendental ou num conjunto deles é quase desimportante, comparada ao arsenal de parâmetros de conduta que essas religiões induzem nos simpatizantes.

A valorização do trabalho, do planejamento do dia e da organização coletiva esteve atrelada ao desenvolvimento religioso não apenas no Ocidente. No caso das denominações neopentecostais brasileiras, é fortíssimo o laço entre o seu crescimento nas últimas décadas, de um lado, e o apreço dogmático pela prosperidade individual e familiar no mercado de profissões, do outro.


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