Folha de S. Paulo


O craque, o GPS e o 'se'

Na coluna anterior, escrevi que Ganso, o mais inventivo jogador do São Paulo, me deixa em dúvida se devo tratá-lo como um craque. Pelo rigor e importância da palavra, craques deveriam ser apenas os atletas que se destacam, por um bom tempo, nas melhores seleções e/ou times do mundo. Há exceções.

Na longa lista dos melhores meio-campistas do mundo, não tem um brasileiro. Há quase 20 anos, falo disso, da divisão que houve entre os volantes que marcam e os meias ofensivos que atacam. Sumiram os grandes armadores. Se Ganso fosse formado nas categorias de base da Alemanha ou da Espanha, onde procuram e valorizam os armadores habilidosos e inventivos, ele seria, hoje, um Kroos, um Schweinsteiger, um Xavi ou um Iniesta.

Kaká, que foi um craque, disse que Ganso é chamado, no São Paulo, de PHGG (o segundo G, de Google ou de GPS), porque descobre mínimos e escondidos caminhos.

Os craques, quando envelhecem, passam a correr menos e a brilhar em pouquíssimos lances. Com Kaká, ocorre o inverso. Ele se destacou no São Paulo pelo dinamismo e participação coletiva. Kaká foi um craque diferente, operário. Não nasceu craque. Aprendeu a ser craque. Hoje, é um bom jogador.

Por falar em craque, o maior de todos, Pelé, felizmente, melhorou muito. No fim de semana, lembrei de outro craque, Maradona, ao ler a coluna de Ferreira Gullar, sobre a dialética entre a necessidade e o acaso, na cultura e na política.

Valdano, companheiro de Maradona na conquista da Copa de 1986, hoje um pensador do futebol, disse, tempos atrás, no programa "Bola da Vez", da ESPN Brasil, que, logo após a vitória sobre a Inglaterra, perguntou a Maradona como ele fez um gol tão monumental.

Maradona respondeu que, ao receber a bola em seu campo, ia passá-la, quando apareceu um inglês à sua frente. Teve de driblá-lo. Tentou, mais uma vez, dar o passe, e surgiu outro inglês, que também foi driblado. Assim, sucessivamente, driblou vários ingleses, inclusive o goleiro, para marcar o gol.

Se não tivesse aparecido o primeiro inglês à sua frente, Maradona não teria feito o mais bonito e magistral gol dos Mundiais. É o acaso e a necessidade.

Hoje, um jogo entre grandes equipes é cada vez mais técnico, mais concatenado, com muita troca de passes e posse de bola, até que a bola chegue a um craque. Aí, sem programação, tudo se decide, em um instante, um movimento de corpo, uma respiração, um passe, um drible, uma finalização e um gol.

Há um lugar-comum de que a história é sempre contada pelos fatos, pelos vencedores e que o "se" não entra em campo. Penso diferente. É o "se" que nos alerta e nos ensina sobre a incompletude humana e das coisas e sobre as inúmeras possibilidades que há em um lance e em todos os instantes de nossas vidas.


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